segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Gota lúcida

De repente tudo era lúcido. O asfalto sob o sol o cão na coleira a mão do menino o velho trôpego a faixa de segurança o céu lúcido azul bebê entardecendo sobre todas as coisas. Era lúcido o banco mudo e seco e eu lúcida esparramada nele à espera. Eram lúcidos os carrinhos do supermercado abandonados vazios e o ponto de taxi os taxis e os taxistas... era lúcido o sopro nas palmeiras da praça com as palmeiras e todo o verde. Lúcida a cruz na torre azul das Graças em meio aos telhados sobrados e prédios eretos em sólido concreto. Era lúcida a ambulância cor branca sirene e lúcidos os enfermeiros e a seringa translúcida. E lúcidas minhas veias.






quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Merchandising cidadão do século XXi (Xiii...)


Para rir um pouco... que ninguém é de ferro!
Para seu conforto e plena satisfação compre:
Papel em gênero A História*. Veja suas vantagens:
- Anticomedogênico, isto é, à prova dos ataques sorrateiros do seu cãozinho poodle à lixeira do banheiro;
- Dermatologicamente testado, você poderá sem preocupação alguma assar o seu peru (de natal) sem sofrer assaduras em você mesmo!
- Papel em gênero A História é antialérgico, não dá pruridos no seu bolso, já vem previamente picotado e por isto é muito econômico;
- O papel em gênero A história vem em duas opções para seu maior conforto:
1 - biodegradável, politicamente correto, pois se autodestrói em poucos segundos, imediatamente após o uso, evitando a formação de mau cheiro, causado pela oxidação de substâncias orgânicas;
2 - reciclável, se auto-recicla até 6 vezes através de um acionamento automático de eliminação de resíduos, tornando-se branco como a neve dos polos, até para os mais incorrigivelmente racistas;
- Além disto tudo, o nome garante a satisfação, pois papel em gênero A história permite que você faça gênero, sem cheiro e sem meleca, fazendo da sua natureza uma história sui generis.

A História - trocadilho do nome do papel higiêncio "Astória", marca com mais de 60 anos de existência.
K K K K K K K!!!!!!

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Passeio noturno

Noite infante acolhe quente e embala silente
andante, abrigo proteção pra sempre
refúgio das agonias porvir, insuspeitado devir.
Calçadas desgastadas pedra sabão
chapéu de feltro cinza na mão
casas lusas paredes pálidas portas janelas à beira
bocais de louça quebra-luzes latão plissado
bocas da noite derramam sombras douradas
postes postados troncos eretos cheiros verdes
eucalyptus de outrora.
Cães latem grilos trincando noite verão
e embalam recém-nascidos medos límbicos
mães insones berço côncavo ventre convexo.
Vilarejo sob o solo floresce carvão
pulmão xisto betuminoso
como a vida do mineiro chiste duma vida
que sobre vive vizinho dos peitoris.
Lembranças idas cotovelos nas janelas
sustentam pensamentos vagos de um como já foi e como será...
- Boa noite!
E a menininha se aconchega e dorme num colo que acolhe tudo e a tudo sossega... pai.
(aos 3 anos, com meu pai - Minas do Butiá - 1953)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Descompasso

Estava comodamente instalada no seu banco individual, olhando despreendidamente as coisas lá fora. A música escutada já por vários dias, fluindo nos finos fios pretos embutidos em seus ouvidos, era a mesma: Cânon in Z, execução no piano de Tay Zonday. Perfeita. Mesmo sendo a trocentésima vez de escuta, sempre tinha o poder de mover seu sangue em ondas, de forma que diluia todos os nós dos seus músculos, e a deixava entregue e cativa a cada toque mágico de todos os dedos do artista. Tons graves destampavam do seu poço uma profundidade intrinsecamente obscura de suas emoções. Tons altos lhe conferiam asas libertadoras, para a luz e o espaço imponderáveis pela razão.

Percorrendo magistralmente estes degraus com a gema viva de seus dedos, passos da alma do artista lhe abriam o portal mágico da unificação, onde toda a agonia pelo saber cessa. Isto a fazia sem tamanho, imensurável, no macro ou no micro cosmos, condição intraduzível em qualquer língua falada. Ora era o mar em sincronia lhe emergindo gigantesco preso à gravidade da terra, ora a lua iluminando o lado oculto, lhe extravasando água salgada, contida à beira de portas abertas, olhos secos à espera...

Bendita sejas, ó alma perfeita escorrendo em dedos perfeitos, numa vontade perfeita! Podia escutar cada toque separadamente, e em conjunto. Podia distinguir os dedos da mão direita e os da mão esquerda, em desabalada fuga, simultânea ou separadamente. E ainda podia ver o som de cada tecla em percussão transpirando nos muros velhos das ruas, nas árvores copiosamente verdes, nos sincopados rostos dos que esperavam a condução certa para seu destino traçado, plantados com seus pés inquietos, debaixo de um abrigo de zinco. E em cada rosto, em cada corpo, em cada gesto, pairava a nuvem transparente de suas almas iluminadas pela certeza da eternidade.

Dentro da lotação era um pouco diferente. As pessoas pareciam mergulhadas em seus propósitos, uns mais imediatos, como simplesmente chegar ao ponto na hora certa. Outros mais a longo prazo pareciam percorrer seus rumos com seus músculos faciais rígidos, e não com os pés. Carregavam aos ombros o peso dos seus dias e um comportamento viciado de imediatismo mantinha-os sempre alertas, como prontos a responder a uma inesperada exigência do acaso. Não sabiam do magistral concerto que de Pachtlbel a Zonday apaziguava qualquer discórdia, em dois ouvidos ali presentes. Mesmo assim, pairava sobre todos uma névoa, tipo “Eu vos dou a minha Paz!”. Sim, era isto. A luz diáfana iluminava cada canto obscuro. Ela estava dentro e ela estava fora, em todos os sentidos.

Decidira naquele exato momento deixar um último pedido, quando de sua morte. Queria esta música no seu funeral. Porque nada traduzia mais o que sabia de si mesma do que aquela música, naquela execução. Era a sua vida, águas serenas ou oceano turbulento, se enlaçando pela vida afora, no inesperado e surpreendente acaso com que a vida armava-se para colorir-lhe ou turvar-lhe os dias, desde que nascera, seja do sombrio gelado da morte de seus pais, antes dos 5 anos, ao calor irradiante e majestoso do nascimento de seus filhos, a partir dos 18. Imaginou os amigos, filhos e demais parentes, ouvindo aquela música, por vezes aparentemente desenfreada, mas contida em exímios movimentos calculados na exatidão de um com passo quatro por quatro. Era ela, toda. Mas será que eles entenderiam isto? Ou alguns pensariam “eis quem viveu louca e louca morreu. Que tem a ver esta música com este momento?”

Quatro filhos, quatro vintenas ainda um tanto longe por se cumprirem, quatro netos por enquanto, dois casamentos (que afinal é divisor de 4). Embora se soubesse fraca em números, reconhecia que tudo é matemática. A vida o é. O escoar de milionésimos de segundos que se acumulam em séculos é a prova disto. O inexorável caminho percorrido nas células de sua pele enrugando, seus cabelos embranquecendo... seus ossos virando esponja, tudo números, em combinações químicas de elementos que vão se defasando...Sua vida era quatro por quatro, com possíveis divisores de compassos.

Imaginou lágrimas sentidas, algumas culpadas, outras aliviadas pela sensação do dever cumprido. E desistiu da intenção. Não queria corromper tão bela música, tão majestosa execução, com mal entendidos. Carregaria em suas moléculas mortas em desalinho a ressonância daquela vida compactada numa melodia. E o sangue evaporado na fumaça de seus ossos em cremação se aninharia em outras narinas, e encontraria outros neurônios, em outras conexões.

Compreenderiam Cânon, in D (ré maior), não como auto condenação de um réu que nos imputamos por viver sem entender. (O sentido que buscamos pra viver está nas coisas? Somos nós que o colocamos? Ou nada disto importa?...) Compreenderiam Canon in Z, de Zen, de Zero, de paZ, de Zoar, de beleZa, de faZer, de OZ, de Zeus, deus de todos os deuses. E ao contrário de suas frustradas expectativas para sua própria eternidade, a melodia continuaria viva, embalando outra lucidez, outra alma soprada pela grandiosidade de viver.

Interrompendo seu mergulho em si mesma, uma freada brusca lhe puxou para a realidade. Algum neurônio bloqueou a melodia nalgum espaço de seu cérebro, à prova de som. Num silêncio avassalador viu e previu tudo num milionésimo de segundo, friamente calculado pela precisa e milagrosa exatidão de suas sinapses. O sinal fechou para sua lotação, numa esquina, que desembocava numa principal. Motores canibais da faixa perpendicular à esquina arregaçaram suas bocas, emitindo um ruído feroz, como a querer recuperar séculos perdidos para chegar a rumos não sabidos por ela. Uma fileira da via principal parara num congestionamento. As outras fileiras andavam. Mas o menino atravessando a rua não viu. Seus neurônios não consideraram todas as variáveis, talvez em defasagem matemática. Tinha 11 ou 12 anos.

Ao ultrapassar a fileira parada, adentrou na faixa vazia, por uma nesga de segundo. E ela viu o futuro imediato e irrevogável daquela cena. E nem sequer deu tempo de gritar. Mesmo que de nada adiantaria. Entretanto, brotou de suas cordas vocais um gemido como um frêmito: ai, Jesus, Jesus, Jesus! E o choque de diferentes pesos e velocidades arremessou seu corpo franzino para o alto e ele rodopiou no ar, numa cambalhota circense e tinha uma enorme pedra de sólido granito ao cordão da calçada e sua cabeça num ângulo de 45 graus em relação à pedra iria se esborrachar em sua quina e ele bateu no asfalto como uma bola de borracha e desvirou-se no espaço retornando à condição de bípede e como um João bobo de plástico inflado ficou de pé indignado aflito pálido e tímido. E seguiu seu rumo.

Um menino, meu Deus, uma criança...nasceu de novo! Tu és bom, Tu és bom! Bem dito menino renascido, bendita mãe que nada viu, bendita a vida...

Olhou dentro de seu veículo as pessoas indignadas, gesticulando, o motorista apontando, tecendo comentários. Sim, todos estavam obviamente pasmos, pois um menino quase morrera, que coisa estúpida... Ó Deus, um menino se salvara, isto era o que importava!

Cânon voltara a verter em seus ouvidos, como um oceano turbulento, traçando uma parede de isolamento acústico entre ela e as pessoas da lotação. Sentiu vontade de compartilhar seus nervos em frangalhos pela morte eminente de um menino. O que estariam comentando os demais passageiros? Todos tinham visto o ocorrido, como que de camarote, num teatro de bancos amolfadados. Como estariam seus corações frente a tudo aquilo?

Tirou os fones dos ouvidos.

- Claro, ela estava errada. Julgou que a lotação ia avançar o sinal amarelo e quis ganhar a vez!

- Sim, e ainda se achou cheia de razão!

- Mas eu não tive culpa, vocês viram...parei bem na esquina, aguardando a minha vez...

- Mas a culpa de ultrapassar o sinal foi dela, tá na cara!

- De certo comprou a carteira...

- Está cada vez m ais difícil dirigir nesta cidade...

Nenhum outro comentário. Só seu patético espanto deixou-a por um breve instante suspensa a equilibrar-se num fio. Como se tivessem se rompido os elos que lhe encadeavam os pensamentos. Fora por um lapso de tempo de sua nave racional, duvidava de sua lucidez.

Uma fenda abissal entre o seu coração e aquelas bocas todas tragou-lhe de volta ao seu banco executivo. Cânon em (D)escompasso. Mundo oco, homens de lata, espantalhos tristes, meninos perdidos ...

Com o coração também em descompasso, voltou os fones aos ouvidos, encolhendo-se na bolha de sons que a protegiam, como num útero cósmico.

www.youtube.com/watch?v=RSCzMT8IMME - link para ouvir a execução

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Vida além da razão


Para sempre, nunca mais, meu eu interior! Piada. Não dominamos a vida. Pesa-nos demais carregar a eternidade, do modo como a entendemos, e carregá-la amarra nossos movimentos. É a velha auto-suficiência, lá da queda de Adão, nos condenando ao exílio. Por outro lado, constância nos é mais leve e possível. Ainda que possamos pensar de início que constância significa amarrar-se a um propósito único, seu sentido mais profundo está ligado à atitude frente ao transformar-se contínuo das coisas. Eternidade está fora do nosso alcance, mas constância não.

O espanto, a admiração e o prazer brotam na criança diante do mundo, e conforme vamos nos tornando adultos, o espanto vai se transformando em medo, a admiração em dúvida e o prazer em angústia.

Felizmente, a criança sempre vive em nós, apesar de todas as forças contrárias. A criança vive uma coisa de cada vez, e não atribui significados pessoais à vida. Isto talvez signifique deixar a vida fluir como na filosofia dos anos 60 e 70, porém sem a desimplicação de um cérebro entupido de fumaça ou o sangue intoxicado de alucinógenos.

Deixar a vida fluir significa deixar que as coisas sejam o que são. Envolvê-las nos nossos significados faz parte da condição humana, mas prender-se a elas não. Viver aprisionado a uma morte, a uma ideologia, a um princípio ou a um pré-juízo nos tolhe o prazer de renovar constantemente nossa vida.

O que nos dá unidade e consistência não é o apego, mas o desapego, pois vamos nos constituindo, à medida que fluímos com a vida. Entretanto, confiar e esperar, ou em outras palavras, e esperança, são atitudes necessárias para reverter o medo, a dúvida e a angústia. Garras afiadas nos fixam como que em rochas, quando o desafio é abrirmos mão da nossa compreensão sobre as coisas e nos colocarmos como aprendizes frente à vida.

E muitas são nossas compreensões equivocadas sobre como o mundo é. Exemplo disto é a noção que temos de “mundo interior” e “mundo exterior”, que nos leva a uma dicotomia e a uma mutilação de ser. Interior e exterior, entre outros conceitos, é um modo apenas “didático” de compreendermos as coisas, na abstração. Abstrair significa recortar o que em si não se recorta. Tirar uma parte do todo, a qual, sozinha, nada significa.

Lamento abalar as estruturas egóicas de certos modos de ver a vida, mas eu interior não existe, a não ser como ego-ismo, derrame do ego sobre todas as coisas, ou confinamento em si mesmo. Existe um mundo dado e uma compreensão sobre ele. Existe o vínculo entre a chama da consciência e o meio do qual se alimenta esta chama. E este vínculo não está fora nem dentro de um corpo, mas em cada átomo do universo. Conforme se organizam estes átomos ou suas partículas, temos a diversidade infinita da vida, animada e inanimada.

Perceber o mundo em exterior e interior resulta dos sentidos limitados que constituem nosso corpo. Confinarmo-nos em nossa compreensão de espaço-tempo nos aprisiona numa redoma de auto suficiência enganadora. O limite do dentro e do fora, quando se refere ao âmago de nosso próprio ser, à nossa alma, ao nosso ser-estar no mundo, é um chão propício a enraizar medo, insegurança e prepotência, e, o pior de tudo, solidão.

Vivemos todos imersos no mesmo oceano de vida, animada e inanimada aos nossos sentidos. Não há dentro nem fora, há foco e desfoco, conforme nosso olhar e nossa consciência. Dentro de nós existe apenas sangue, músculos e ossos, limitados pela pele. O que ultrapassa esta condição é a chama da consciência, imersa nisto e que transcende o limite de um corpo.

Mas não estamos condenados ao limite de nossa compreensão. Somos dotados da capacidade de ir além do simples método racional de apreender o mundo. Somos capazes de voltarmos às coisas mesmas e à nossa relação com tudo isto, e reaprendermos de forma contínua. Conhecer e aprender nunca se esgotam, seja com relação ao que for.

Para sempre e nunca mais resultam de uma visão parcial das coisas. Porque queremos eternizar determinadas coisas e extinguir determinadas outras, por meio de nossa vontade. Mas o que é eterno é o fluxo do espetáculo da vida e disto não podemos nos apropriar. Deus colocou uma espada de fogo entre nós e a árvore da vida. Não podemos provar de seus frutos, sem antes digerirmos os frutos da árvore da ciência do bem e do mal. Nosso livre arbítrio diz respeito somente a nós mesmos, ao nosso próprio movimento e às nossas escolhas, não se estende ao mundo em que estamos mergulhados. Quando isto acontece, vira dominação ou submissão.

Eternidade e constância não são paralelas que nunca se encontram. Quando ruem as paredes do mundo interior e do mundo exterior, se encontram e se unificam. E para nosso pasmo, o espanto, a admiração e o prazer são irracionais, porque a emoção assim o é. Brotam da espontaneidade das coisas, que são irracionais por si mesmas e tem seu movimento próprio. A racionalidade é um atributo nosso e nos vem da relação com as coisas, não são as coisas que brotam da nossa racionalidade. Existe vida além de nós. E fazemos parte dela. Existe vida além do nosso entendimento.

sábado, 15 de outubro de 2011

Pseudônimo

Primeiramente despiu-se das paredes do seu quarto, do chão e do teto. Ficou assim, em sua cama, flutuando em cima do quarto do oitavo andar, e ao abrigo das coisas que flutuavam no décimo andar. Em seguida achou melhor despir-se de todas as paredes do seu apartamento. Sentiu um enorme alívio ao sopro do ar da manhã no seu cabelo e no lençol que lhe cobria. Suspirou profundamente frente à luz do dia que preenchia por completo todos os espaços.
Viu os vizinhos de baixo e os vizinhos de cima, em suas lides matinais. Mais estranho os de cima, pois os via dos pés para a cabeça. De baixo para cima os perfis ficam paradoxais. As nádegas parecem puxadas para baixo, se amontoam pesadas nas coxas que como troncos sustentam uma silhueta robusta de braços finos e pés grandes, meio em descompasso, como num quadro de Tarsila.
A roupa ideal, o peso certo, manequins, modelos, cinturas, bustos, músculos rígidos, nada disto. Via-os nus, em seus banhos, despidos de seus recursos. Os meninos, o pai, a mãe, todos corpos tão somente, carne molhada e ensaboada, numa humildade alienada, simples e resoluta como a água que escorria na pele e rolava abaixo, formando uma lâmina no chão transparente que a tudo sustentava.
Achou melhor ainda despir todo o prédio, e os prédios vizinhos, e mesmo a cidade. Pronto! Agora estava bom. Também despiu tudo de móveis e utensílios, deixando o espaço nu e livre, como na criação. Levitando no plano horizontal de sua cama, via camadas sobre camadas, chão, paredes e tetos transparentes, e as pessoas se movendo, umas sobre as outras, alheias ao seu olhar. Pessoas soltas no espaço, em diferentes planos de altura e profundidade, umas de pé, andando de um lado para outro, outras como que sentadas, levando a mão à boca, segurando coisas invisíveis. Vizinhos uns dos outros, se punham frente à frente, indiferentes, mexericando coisas em possíveis armários, gavetas, prateleiras ou balcões.
Julgando-se protegidos pela invisibilidade que supunham nas paredes, coçavam-se em partes íntimas, faziam micagens, miravam-se vaidosamente nos espelhos, junto a movimentos de se vestirem ou despirem, pôr sapatos, se pentearem, pegarem objetos. Mas tudo apenas em movimentos puros, como na caricatura de um amanhecer burguês, na mímica de uma dança previamente coreografada.
Podia ver o porteiro lá embaixo, pseudamente sentado, falando ao telefone, pressionando botões de abrir e fechar possíveis portões, tudo apenas gestual. Crianças carregando possíveis mochilas, homens possíveis pastas, mulheres possíveis bolsas, se equilibrando na ponta dos pés, em possíveis sapatos de salto alto. Cada um vestido com a fragilidade de sua nudez.
Espalhava-se verdadeira multidão, do bairro a todos os lados da cidade, até onde a vista alcançava, dispersa no espaço, ocupando níveis altos, longe do chão da terra, como em edifícios, com arquivos e gavetas virtuais, disponíveis apenas ao toque do olhar. À medida que a distância crescia, os corpos iam se desconfigurando dos padrões humanos, perdendo o formato. Primeiro pareciam pássaros, depois moscas, e mais para a direção do Cais do Porto, para o centro da cidade, drosófilas. Bem ao longe, fundo, pairava apenas uma garoa cor de chumbo, engolida pela fenda do horizonte boquiaberto.
Um tanto de inquietação se derramava em seu peito, com um gosto meio amargo. O ridículo, o triste, e o real humano se entrelaçavam numa dança de ritmos incompatíveis. Parou um ônibus para embarcar passageiros, também despido de paredes e bancos, e chão e teto. Pessoas enfileiradas, pseudamente sentadas em possíveis bancos, e as que pseudamente se penduravam para entrar numa possível porta. E um pseudo motorista e uma pseudo direção, e um possível destino.
Voltou a atenção para o ninho morno de sua cama. Agora nenhum limite lhe barrava os sentidos. O azul do céu invadia seus olhos, filtrado pelas pessoas se movendo, acima, abaixo, dos lados. O cheiro de terra molhada subia dos canteiros regados pelo jardineiro até suas narinas e se derramava em suas papilas gustativas. As sirenes das construções, os motores dos veículos, o gorjeio dos pássaros, os latidos, as vozes das pessoas, tudo vinha como bigorna ao encontro das bigornas dos seus ouvidos. E o vento frio da manhã batia à sua pele, traçando o limite entre o seu corpo e a brisa.
Um sentimento de coisa inteira lhe cingia. E de pertença. Como se de repente, todas as incógnitas tivessem se diluído nos ruídos, nos cheiros, nos sons e na luz da manhã. Tudo estava absolutamente como devia ser, como a resolução de um teorema demonstrado em si mesmo.
Suspirou fundo e lentamente espichou-se em sua cama. A penumbra de repente se fez concreta, bem como as paredes, o chão e o teto, em seu quarto. E o absurdo urbano lhe chamou para o chuveiro. Pseudos pensamentos se derramaram no seu possível dia. Ergueu-se, com a sensação de muitos olhos sobre si. Acelerou seus movimentos, no exíguo espaço de 15 minutos. Precisava pegar o próximo ônibus. Não podia se atrasar para o trabalho.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Penso, logo existo? (O tempo e o vento II)


Quando olhamos pela janela, parece-nos ver o tempo lá fora, solto, envelhecendo as árvores, acinzentando os prédios, pondo musgo ente os paralelepípedos, soprando o vento sobre as folhas secas, embebido em tudo, como se fosse um ente dotado de força, identidade e inteligência. Mas não é assim.

O tempo está em nós. As coisas são apenas coisas, e as coisas acontecem. Acontecer é se mover, mover é transformar. O vento é só vento, e as folhas secas, só folhas secas. Nem sequer isto, porque lá fora da janela acontece um fenômeno completamente livre de qualquer definição, independente de nós. Até mesmo fenômeno já é algo que estamos nominando.

Somos nós que pomos significado, e ordem nas coisas. Se nos apropriamos do que acontece, fazendo uma história (passado, memória) ou antecipamos o que ainda não aconteceu (futuro) isto é um ato humano. Entender isto nos livra da milenar polêmica entre os filósofos, que discutem se a realidade existe, ou se é fruto da nossa mente.

Ora, ninguém arriscaria por em prova esta dúvida, jogando uma pedra para cima e não saindo de baixo. Isto é óbvio, a realidade existe, e eu existo nela. Mesmo que fosse fruto da nossa mente, ainda assim existiria de alguma forma. Porque a lógica da morte e da transformação está aí, nos governando. Não porque penso, Monsieur Descartes, mas porque existo tal qual as coisas, e penso sobre elas. E porque penso sobre elas, não sou uma coisa igual às outras coisas.

Pensar é uma forma também de se mover e transformar. Mas as coisas e a nossa relação com elas é que são a fonte do nosso pensamento, e não o pensamento que é fonte das coisas. Tente pensar alguma coisa, que antes não tenha sido coisa no mundo, e que não se ligue a nós por palavras. Infelizmente, nada é inédito, como possa alguém querer ou pensar.

Reeditamos continuamente o mundo, pelos sentimentos e pelo pensamento. Primeiro nos deparamos com as coisas que nos rodeiam, e elas nos invadem, com sons, imagens, texturas, sabores, cheiros. Então pensamos sobre isto, e para pensar, um instrumento precisa ser construído: a palavra.

Pensar é se articular com a realidade, recriada pelos sentidos e expressa pela palavra. Esbarramos com as coisas, que se inserem e se infiltram em nós, e nós as envolvemos com nossos atributos humanos. Criamos outro espaço, virtual, onde podemos nos comunicar, entre humanos, com atitudes, gestos, ações e palavras, de saberes com saberes.

Mas a todo o instante precisamos checar nosso discurso próprio e/ou do outro com as coisas concretas, para não nos perdermos num mundo irreal. As palavras dizem do entendimento humano sobre as coisas, mas nem sempre são fiéis às coisas. Nosso saber do mundo nem sempre coincide com o que o mundo é.

Por isto, nossa humanidade é constituída entre os humanos. Não nascemos humanos, mas humanizáveis. Pensar e falar é um processo único, que se constitui no mundo, entre as coisas e as pessoas. Coisas, pessoas e palavras, com todo seus sentidos e significados, advindos de forças da natureza e de ações, nos fazem quem somos. Logo, primeiro existo, depois penso. Penso, porque existo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O tempo e o vento...



A gente pensa o tempo como algo abstrato. Uma força que nos domina, que nos escorre pelos dedos e deixa marcas na nossa pele. Mas abstratos são os dias e as horas, porque são convenção humana.


O tempo é substância concreta, é exclusivamente o movimento das coisas, os acontecimentos, os fatos, constituídos de pessoas que se esbarram, bichos e plantas, astros, planetas, terra, luz e sombras, guerras, sangue, risos e lágrimas. É este movimento que a gente tenta pôr em caixinhas, conforme nossas limitações físicas, e ordena em antes e depois.


E uma sucessão de antes e depois nos pesa nos ombros e nos envelhece. Mas não é o tempo que anda, lento ou rápido. O tempo não existe, em si, apenas para nós, na nossa compreensão. As coisas se modificam sem trégua, e nós no meio delas. Eterna mente.

sábado, 24 de setembro de 2011

Torre de Babel


Informação, pra virar conhecimento, tem que servir pra vida e ser aplicada. Se não for assim, é inútil. Vivemos num mundo atulhado de informações, que não servem pra nada. Cuidar do lixo, dar-lhe o destino adequado, também se aplica ao lixo intelectual. O micro planeta que somos, cada um, agradece...

Muitas vezes nos cremos sabidos, inteligentes, e pensamos que nem precisamos muito do outro, se nos mantivermos bem informados, intelectualmente alimentados.

“Entendemos” tudo, e podemos tocar nossa vida sozinhos. “Eu entendi tudo isto” é óbvio, desde que esteja na mesma língua e no mesmo horizonte cultural. Mas se aquilo que entendemos não servir para nos modificar para melhor, é uma carga inútil.

Entulhamos nosso entendimento de bonitas palavras, pensamentos sábios, como porcelanas raras, e usamos como trunfo, poder, status. E o que poderia ser um diálogo, um encontro, uma troca e um crescimento, vira um discurso de palavras vazias.

Vivemos num mundo solitário, onde todos entendem tudo, mas ninguém se entende mutuamente. A palavra pode ser um milagre, se tiver alma. Pra ser assim, precisa ir além do entendimento léxico. Uma chama solitária se auto consome e se extingue, sem ninguém para reacendê-la, sem ninguém a quem iluminar. Nossa chama se alimenta do outro.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A dança da vida



As relações entre as pessoas - marido e mulher, pais e filhos, irmãos, amigos, e tantas outras - são como uma dança, tem coreografia própria. Isto harmoniza as diferenças, preserva a beleza e a singularidade de cada um. De conhecimento e acordo prévio das partes envolvidas, executar movimentos coordenados não significa cristalização, condenação à mesmice. Sempre há novos passos e novas coreografias a aprender e a ensinar. Importante é ouvir, se mover, se enlaçar, sintonizar. Porque a graça e a beleza da vida, a mais bela sinfonia de todas, encontramos aprendendo a dançá-la.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Burro Beleza



Tenho tristeza e choro. O menino à noite, ontem, treze anos, conhece todas as letras, mas não lê. E eu na frente dele, debruçada sobre a mesa, armada de papel e lápis.

- Veja, é o A! Escreve primeiro o A. Não sabe o que quer dizer primeiro? Bom...isto é grave, já vamos ver. Onde começa esta palavra aqui? Não! Aí é o fim! Não sabe o que é começo? Não? Assim, oh, não tem nada neste papel, agora vou começar, vou escrever primeiro o A! Então quando digo primeiro o A, quer dizer que ele tem que estar à esquerda da outra letra. Entende?

Não, ele não entende. Às vezes sim, às vezes não. Nunca sei quando ele não entende e quando não quer entender. Não consigo pegá-lo, escorrega como um peixe. Repete mecanicamente, seguidas vezes, “A, de abelha, B, de bola”, mesmo que as palavras mostradas sejam amigo e beleza”.

Mostro um texto sobre o Burro Beleza. Estamos na letra B. Acho que não fui muito feliz na escolha do texto, porque um dia ele me disse que é burro. Entretanto, em vez do texto, ele se absorve no desenho do burro. Puxo-o de volta para o texto, apontando as palavras. Ele foge para a figura. Na figura o dono do burro puxa o animal por uma corda, mas ele está atolado na areia e nega-se a andar. Puxo-o para o texto. Escrevo, no verso de uma folha usada, sinais que não lhe dizem nada.

Ele a todo o momento se esfumaça. Está inquieto, quer ir embora pra casa.

- Fique, ainda falta meia hora. Está cansado?

Ele sorri, com o buço cheio de gotinhas de suor.

- Está bem, não quer mais ler, não é? O que você gosta de fazer? Desenhar? Bem, desenhe.

- Posso desenhá o burro?

- Claro!

Começa uns traços, olhando o desenho. Depois sobrepõe a folha branca sobre a figura do livro. A luz fraca pende do teto por um fio e sua cabeça faz sombra. Algo nele todo se afrouxa, e alguns traços vão surgindo.

Um esboço da cabeça do burro, focinho, olhos. Algo que seria a pança, que escorre em algo que talvez seriam pernas. Ofereço outra gravura igual, para que compare, ou copie.

- A novela começou?

- Acho que sim, mas o que queres com novela?

- É que a mulher da novela, o marido dela...Sabe o meu pai?

- Sei, vi teu pai lá hoje, quando fui te buscar pra aula. Ele foi te visitar?

Seu rosto iluminou-se. Mas isto na fração de tempo infinitesimal de um átomo, em qualquer massa. Encolhe-se logo, na segurança do escuro escorregadio que o reveste.

- Quando eu voltar pra casa, ele já foi embora...A mãe não deixa ele ficá. Mas ele vai pagá a minha mãe.

- Pensão?

- Sim. O meu irmão vai de tistimunha.

Pronto o desenho. Está lindo. Tem vida. Não é o burro, mas traços inacabados, abertos, que permitem a quem olha entrar em toda a possibilidade. Pedaços de um animal, ligados por uma corda a pedaços de um homem.

- Vamos escrever o título, ou queres escrever o que diz o homem, dentro deste balão?

- O balão.

- Bem.

- “Burro Beleza só quer moleza? Eia! Eia! Eia!”

Tenho tristeza. Primeiro o A! A ordem dos fatores não altera o produto, a não ser para quem escuta.

- Não sabes o que é primeiro? O A! De amor...

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Foto grafando


Ele fotografa o chão todos os dias,

Com seus olhos de varredor,

Com sua roupa laranja,

Com seu carrinho de folhas secas.

Não vê de fora, não sai de si,

Não chora, nem ri.

Nem possui o seu trabalho.

Vê-se formiga no formigueiro,

Anônimo, acéfalo.

Três olhos, do nono andar,

fotografam seu suor,

begônias, bem-me-quer,

acácias e alamandas,

e sem o menor pudor

roubam-lhe a alma.. .

Zoom

Objetos anonimados

Ino’minados dias postos na rotina

capturo na retina dedos dos meus olhos

páginas folhadas ao acaso.

Janela aberta filtrada na cortina

diafragmo embevecida mente

luzes rastros libertos numa folha

álbuns do que passou

Clic!

Etiquetando


Meus versos embalados

sentimentos sufocados

em anos de rótulos

nos mercados de gênero$.

Escrito nas estrelas



Alni’lã

Betelgeuse

Aldebarã

anil manhã

que ainda não veio.

Maria

Mar’ia

Mari’ah

Madrugad’a fora

já nela ad’entro

no meu quarto.

Ciclo urbano


mp3005p2.jpg

brneo.wordpress.com
Parte I

Todo dia pego lotação. Manhãzinha cedo, ela sobe a ladeira, na esquina da minha rua, e vejo a obra. O pedreiro parado no esqueleto do portal, olhar vago, pousado em coisas transparentes, onde o foco é sempre mais além. Magicamente eu alcanço este foco, com outros olhos, onde as retinas são retas infinitas que nossos passos trilham com pés de sonho. Ele não me vê, mas eu sim. Capturo luz e sombras no côncavo do céu que me encobre e nos bolsos do meu casaco, nas minhas mãos geladas, que clicam uma fotografia virtual do desencontro sincopado de nossos níveis. O ritmo da música ecoando nas parietais do meu crânio, uníssono no córtex do meu cérebro, martela feito coração pulsando. E move a pedra do meu peito. Ressucita-me, mesmo que a partir de hoje, a partir de hoje...E pássaros enclausurados ganham liberdade. Fora, dentro e fora!

Tudo todo o dia parece igual. A rotina roda pesado compromissos previamente agendados pela necessidade de se enquadrar num mundo feito de pedras e pão. Desejos e coisas que estariam fora do alcance, sem a sagrada agenda, movem os meus passos e os de todos que povoam as ruas alienados de si mesmos.  Cada pedra, curva, motorista, passageiro, tudo igual. Mundo de vírgulas e ponto final. As árvores a décadas desfilam seus cabelos verdes pelo vidro embaçado de um comboio, neste meu porto alegre. O vento e a chuva e o calor e o frio e o sol. E as calçadas trincadas, ladeiras úmidas e os terrenos baldios. Mas tudo pode ser sempre novo, quando se renasce inocente.

A seiva que sobe nas veias destes troncos não é a mesma de outrora. Resíduos do meu banho rolam para o rio, estuário de toda a gente, e um pouco de mim verdeja nestas copas e alimenta o rodopio das folhas. Um pouco de mim flutua sobre as nuvens, se dilui e encharca a terra. Penetro narina a dentro dos desavisados que respiram pra sobreviver apenas. Um pouco de mim, pele morta que revive, me adentra, me alimenta e renova. Um pouco do pedreiro, vida de pedra, no seu olhar distante embevecido noutra dimensão. Os banhos todos do planeta se escoam, e também todos os suores e lágrimas e a excreção das vísceras de todo o ser vivo, debaixo do sol. E os elementos todos se fundem e fermentam e se transformam, na escuridão do húmus que fertiliza novas vidas. O frio do sol oculto se derrama nesta nave, aquecendo noutra face, cirrus-cúmulus-nimbus, águas de cima do firmamento.

Velhos são os olhos que não brilham, as pálpebras de pele agonizante que teimam em encardir a alma, que se fecham e se abrem, nem sempre em sintonia com o espetáculo. Cansaço de ser. De não ser. Órbitas vazias, mas iluminadas pela mesma chama. Eu, o pedreiro e o uni-verso inteiro.


Parte II

Todo dia pego o trem, noite escura ainda, olhos pesados, gosto amargo de café puro na garganta e de coisas que nem penso, pra não cair num poço sem roldana. No formigueiro da estação sou picado todo dia.  Uma coisa que arde não sei bem onde, dentro. Gosto meio enjoado, de quem comeu muito pastel de vento, feito com gordura já usada, que recende pra todo lado. Deve ser por isto que ninguém se vê, e fica transparente, sem ser alguém na multidão. Medo de contaminar ou de ser contaminado pelo ranço que arde na garganta. Os pés andam sozinhos, sem alma, corpo vazio. Mas dentro a chama treme em cada um, resto de fogo que ainda esquenta. Talvez um sopro do deus que tanto falam por aí.

Desço do trem e pego meu rumo noutro ônibus que me traz aqui. A caliça recebe meus pés de sapatos tortos e meu nariz já sente o cheiro de cimento pó, de cimento água, de cimento massa, de cimento fresco que evapora e me enche os pulmões. Coração duro deve nascer daí. Pedaços de caibros,  estacas e vigas vão se alinhando pra segurar mais um teto, que meu não é. Me encosto no portal e a minha mão toca no tijolo, dureza da parede que ergui. Que me segura.

Respirar de manhã cedo é bom. Paz, silêncio de uma rua de gente fina, longe das minhas faltas. Fico esperando um pouco as coisas que se repetem todo dia, porque nem sempre se repetem, já vi. Meu café da manhã se completa com o cachorro que me abana o rabo, e o passarinho que pia nos jardins, e os pequenos que passam para a aula. Tudo é espanto, parece sempre novo! Um inseto, uma criança, uma nuvem, me aparecem  como a primeira vez. E o meu corpo fica leve, vazio do que não tenho e sou feliz, nesta hora.

E vem a lotação todo dia. Aquela mulher na janela, fios pretos saindo dos seus ouvidos. Este tal de MP3, já aprendi. Muita porqueira triplicada. Tira as pessoas do ar, viram ET. Ela parece um manequim de cera, destes de loja, vista da janela. Mas sei que algo dentro dela está acontecendo, porque deve estar ouvindo música, que faz a gente voar.

Eu que nem quero isto... homem metido a passarinho pode se esborrachar! Mas... pensando bem, talvez até viesse a gostar, ficar sozinho comigo mesmo, dentro da minha cabeça, ou fora, sei lá. Uma vez escutei um destes aí, som bom pra caramba!

Quando a lotação vira na esquina de cima, tenho que pegar no dia. Ponho bota de borracha, capacete, viseira nos olhos, e sou eu que viro ET...




A justiça social não passa só pela igualdade de acesso aos bens materiais, mas antes pela igualdade de pele, sangue, sonhos e esperanças, contidos na diferença. Isto nos faz iguais.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Declaração


Lembro do que paz sou

sonho vivido

vívidos por-de-sóis

portais escancarados

dias que desenhei meus passos

exercício ca’lendário fim.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Hotel Fazenda Invernadinha - São Francisco de Paula via Gramado











Errante


Antes das casas, cascas,

paredes, rebocos, tintas,

havia uma alma nua, errante,

oh, Vladimir!

Quero dormir sobre meus pertences,

saco de molambos carregado às costas,

caracol humano que não deixa rastro.

Nas ruas de outrora, outra hora de ant’antes,

chão batido, pés desnudos de alicerces,

tendas, com tendas, panos, pós,

pés de vento.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Juízo final (título provisório)


Dia negro aquele. A grande mãe surgiu no horizonte, mas diferente de outras vezes, em que se derramava em alimento sobre nós, como maná . Estendeu uma parte de si sobre nosso habitat, mergulhando nele como que uma extensão, cuja ponta sugava porções de nossa substância. Repetidas vezes algo semelhante a franjas flexíveis, mas firmes, alcançavam o chão e revolviam-no, não ficando pedra sobre pedra. A luz turvava-se numa grande turbulência.

Nossa pressão atmosférica modificava-se à medida que aquele buraco negro tragava nosso oxigênio. Um peso mórbido em nossos corpos inundava-nos de pânico, frente a um extermínio eminente. Mesmo assim, paradoxalmente, nos movíamos mais velozes, gerando o caos.

Os poucos que não foram levados aos céus, onde sumiam engolidos noutra dimensão, permaneciam em completo desespero, na angústia crucial de serem salvos. De tempo em tempo , o céu se derramava sobre o planeta, devolvendo nossas substâncias, desta feita, purificadas. Porém, isto significava que mais uma vez as franjas enrijecidas como garras tornariam a revolver o chão, pedra sobre pedra.

Isto se repetiu em vezes que pareciam infindáveis. Até que o céu começou a derramar tão somente cachoeiras de substância purificada. Nossos companheiros foram devolvidos ao nosso convívio, sãos e salvos, e a luz voltou a brilhar, límpida como nunca. Um doce murmúrio de borbulhas inundou nosso mundo, e o maná voltou a cair, paz eterna à nossa boa vontade.

Título definitivo: Limpando o aquário

Oração da manhã


Concede-me o silêncio
de mim mesma
para que me semeie teu grão
espiga madura
pão nosso de cada dia.

Se me desatem pé e mão
para colher a dor alheia
ao meu umbigo
e sejam os meus olhos
poças de gratidão.

E meus ouvidos sorvam
sopro do Teu Espírito
águas que se movem
viscerais rios
apelos que Te alcançam
no fundo do meu c’oração.

Sono rem


Des’ligo fio afio o pensamento.

Quando adormece o corpo

É a alma que desperta

Sim fonia de cães na madrugada.

Durmo profunda mente

e sonhos brotam nasced’ouro rio

escuros abissais Netuno deus.

Tridente morde carne fria

ego fagocitose

centro dos meus ais.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

poeminha dor’mente



Uma porta que se fecha e que aquieta

outra porta que desperta para dentro.

Dobradiça de portões que ao som da brisa

espreguiça da tua alma a sombra esguia.

Dorme doce’mente à luz da lua

que a palavra lenta’mente silencia.

Amanhã?

Será outra língua...

domingo, 7 de agosto de 2011

Cântico


Tu me chamas do fundo nas falésias

caminhos solitários

âmago de eus que aflora domingos de sol batido

no perfil das faces sombra de flor miúda

esmagada no peso do meu pé.

Dá que se abra a porta dos meus anos

e eu ad’entre mágico azul etern’idade

pele do sopro que me deste flor da pele

em cânt’aros de água pura

que aplaca todas as sedes.

Não beba eu cálice de amarguras

noite es’cura pele dos meus ossos

que me car’regam Homus erectus

ponto angular pedra do meu sangue.

Mas se quiseres digo sim

gota a gota

fel que me entranha a língua

res’suscita-me!

Faz em mim Tua pa’lavra

campos de trigo que hão de vir

eterna’mente hoje-sempre

vento que sopras vela do meu barco.

Roca


Não vou despir minha cama

de mim mesma

tenho pena dela...

vazia do meu corpo.

Lençóis lenços amarrotados

pele morna ainda

cincoenta por cento algo’dão

e outra metade

sintético tecido à mão.

Coffea arábica


Tomo café

negros que adentram minha sala

casarão de antes

e rio riso branco todas as cores

Bendictus santo que me santifica

pérola negra rola nestas veias.

Pássaro azul


Cobrirei o branco nesta folha

com pássaros verdes

planeta azul ave dianteira

maior de todas que aqui habitam

Terra!

Órbitas de abraços nimbos

órbitas de abismos rumos

traçam húmus sobre mim

terra negra que me cobrirá.

Desperta dor


Desato o livro folha a folha

sentimentos costurados na lombada

epígrafe lavrada mármore branco

coração sangrando sangue venoso

derramando no vidro dum relógio digital.

Rastros desprendem miasmas

números espirais vermelhas

caracóis em desalinho

molas frouxas sustentam madrugada

que esparrama meus lençóis.

Dois sóis fulguram órbitas da face

iluminando longe céu escuro

horizonte que estilhaça raios laranja ácida

vertendo azul profundo

manhã que se aproxima dia dos meus olhos.

Discos sobrepostos

espinha dorsal que me sustenta

lenta melodia me desperta

porta aberta que atravesso.

Som batido implacável bip

retorna sempre dança de meus passos.

Luzes invadem janela semisserrada

em linhas pont’ilhadas

na parede do meu quarto.

Sonor’idade grafite atrito do meu lápis

grafa cinza grito vermelho

sangue arterial da noite que se foi.