segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Ciclo urbano


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brneo.wordpress.com
Parte I

Todo dia pego lotação. Manhãzinha cedo, ela sobe a ladeira, na esquina da minha rua, e vejo a obra. O pedreiro parado no esqueleto do portal, olhar vago, pousado em coisas transparentes, onde o foco é sempre mais além. Magicamente eu alcanço este foco, com outros olhos, onde as retinas são retas infinitas que nossos passos trilham com pés de sonho. Ele não me vê, mas eu sim. Capturo luz e sombras no côncavo do céu que me encobre e nos bolsos do meu casaco, nas minhas mãos geladas, que clicam uma fotografia virtual do desencontro sincopado de nossos níveis. O ritmo da música ecoando nas parietais do meu crânio, uníssono no córtex do meu cérebro, martela feito coração pulsando. E move a pedra do meu peito. Ressucita-me, mesmo que a partir de hoje, a partir de hoje...E pássaros enclausurados ganham liberdade. Fora, dentro e fora!

Tudo todo o dia parece igual. A rotina roda pesado compromissos previamente agendados pela necessidade de se enquadrar num mundo feito de pedras e pão. Desejos e coisas que estariam fora do alcance, sem a sagrada agenda, movem os meus passos e os de todos que povoam as ruas alienados de si mesmos.  Cada pedra, curva, motorista, passageiro, tudo igual. Mundo de vírgulas e ponto final. As árvores a décadas desfilam seus cabelos verdes pelo vidro embaçado de um comboio, neste meu porto alegre. O vento e a chuva e o calor e o frio e o sol. E as calçadas trincadas, ladeiras úmidas e os terrenos baldios. Mas tudo pode ser sempre novo, quando se renasce inocente.

A seiva que sobe nas veias destes troncos não é a mesma de outrora. Resíduos do meu banho rolam para o rio, estuário de toda a gente, e um pouco de mim verdeja nestas copas e alimenta o rodopio das folhas. Um pouco de mim flutua sobre as nuvens, se dilui e encharca a terra. Penetro narina a dentro dos desavisados que respiram pra sobreviver apenas. Um pouco de mim, pele morta que revive, me adentra, me alimenta e renova. Um pouco do pedreiro, vida de pedra, no seu olhar distante embevecido noutra dimensão. Os banhos todos do planeta se escoam, e também todos os suores e lágrimas e a excreção das vísceras de todo o ser vivo, debaixo do sol. E os elementos todos se fundem e fermentam e se transformam, na escuridão do húmus que fertiliza novas vidas. O frio do sol oculto se derrama nesta nave, aquecendo noutra face, cirrus-cúmulus-nimbus, águas de cima do firmamento.

Velhos são os olhos que não brilham, as pálpebras de pele agonizante que teimam em encardir a alma, que se fecham e se abrem, nem sempre em sintonia com o espetáculo. Cansaço de ser. De não ser. Órbitas vazias, mas iluminadas pela mesma chama. Eu, o pedreiro e o uni-verso inteiro.


Parte II

Todo dia pego o trem, noite escura ainda, olhos pesados, gosto amargo de café puro na garganta e de coisas que nem penso, pra não cair num poço sem roldana. No formigueiro da estação sou picado todo dia.  Uma coisa que arde não sei bem onde, dentro. Gosto meio enjoado, de quem comeu muito pastel de vento, feito com gordura já usada, que recende pra todo lado. Deve ser por isto que ninguém se vê, e fica transparente, sem ser alguém na multidão. Medo de contaminar ou de ser contaminado pelo ranço que arde na garganta. Os pés andam sozinhos, sem alma, corpo vazio. Mas dentro a chama treme em cada um, resto de fogo que ainda esquenta. Talvez um sopro do deus que tanto falam por aí.

Desço do trem e pego meu rumo noutro ônibus que me traz aqui. A caliça recebe meus pés de sapatos tortos e meu nariz já sente o cheiro de cimento pó, de cimento água, de cimento massa, de cimento fresco que evapora e me enche os pulmões. Coração duro deve nascer daí. Pedaços de caibros,  estacas e vigas vão se alinhando pra segurar mais um teto, que meu não é. Me encosto no portal e a minha mão toca no tijolo, dureza da parede que ergui. Que me segura.

Respirar de manhã cedo é bom. Paz, silêncio de uma rua de gente fina, longe das minhas faltas. Fico esperando um pouco as coisas que se repetem todo dia, porque nem sempre se repetem, já vi. Meu café da manhã se completa com o cachorro que me abana o rabo, e o passarinho que pia nos jardins, e os pequenos que passam para a aula. Tudo é espanto, parece sempre novo! Um inseto, uma criança, uma nuvem, me aparecem  como a primeira vez. E o meu corpo fica leve, vazio do que não tenho e sou feliz, nesta hora.

E vem a lotação todo dia. Aquela mulher na janela, fios pretos saindo dos seus ouvidos. Este tal de MP3, já aprendi. Muita porqueira triplicada. Tira as pessoas do ar, viram ET. Ela parece um manequim de cera, destes de loja, vista da janela. Mas sei que algo dentro dela está acontecendo, porque deve estar ouvindo música, que faz a gente voar.

Eu que nem quero isto... homem metido a passarinho pode se esborrachar! Mas... pensando bem, talvez até viesse a gostar, ficar sozinho comigo mesmo, dentro da minha cabeça, ou fora, sei lá. Uma vez escutei um destes aí, som bom pra caramba!

Quando a lotação vira na esquina de cima, tenho que pegar no dia. Ponho bota de borracha, capacete, viseira nos olhos, e sou eu que viro ET...



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