sábado, 15 de outubro de 2011

Pseudônimo

Primeiramente despiu-se das paredes do seu quarto, do chão e do teto. Ficou assim, em sua cama, flutuando em cima do quarto do oitavo andar, e ao abrigo das coisas que flutuavam no décimo andar. Em seguida achou melhor despir-se de todas as paredes do seu apartamento. Sentiu um enorme alívio ao sopro do ar da manhã no seu cabelo e no lençol que lhe cobria. Suspirou profundamente frente à luz do dia que preenchia por completo todos os espaços.
Viu os vizinhos de baixo e os vizinhos de cima, em suas lides matinais. Mais estranho os de cima, pois os via dos pés para a cabeça. De baixo para cima os perfis ficam paradoxais. As nádegas parecem puxadas para baixo, se amontoam pesadas nas coxas que como troncos sustentam uma silhueta robusta de braços finos e pés grandes, meio em descompasso, como num quadro de Tarsila.
A roupa ideal, o peso certo, manequins, modelos, cinturas, bustos, músculos rígidos, nada disto. Via-os nus, em seus banhos, despidos de seus recursos. Os meninos, o pai, a mãe, todos corpos tão somente, carne molhada e ensaboada, numa humildade alienada, simples e resoluta como a água que escorria na pele e rolava abaixo, formando uma lâmina no chão transparente que a tudo sustentava.
Achou melhor ainda despir todo o prédio, e os prédios vizinhos, e mesmo a cidade. Pronto! Agora estava bom. Também despiu tudo de móveis e utensílios, deixando o espaço nu e livre, como na criação. Levitando no plano horizontal de sua cama, via camadas sobre camadas, chão, paredes e tetos transparentes, e as pessoas se movendo, umas sobre as outras, alheias ao seu olhar. Pessoas soltas no espaço, em diferentes planos de altura e profundidade, umas de pé, andando de um lado para outro, outras como que sentadas, levando a mão à boca, segurando coisas invisíveis. Vizinhos uns dos outros, se punham frente à frente, indiferentes, mexericando coisas em possíveis armários, gavetas, prateleiras ou balcões.
Julgando-se protegidos pela invisibilidade que supunham nas paredes, coçavam-se em partes íntimas, faziam micagens, miravam-se vaidosamente nos espelhos, junto a movimentos de se vestirem ou despirem, pôr sapatos, se pentearem, pegarem objetos. Mas tudo apenas em movimentos puros, como na caricatura de um amanhecer burguês, na mímica de uma dança previamente coreografada.
Podia ver o porteiro lá embaixo, pseudamente sentado, falando ao telefone, pressionando botões de abrir e fechar possíveis portões, tudo apenas gestual. Crianças carregando possíveis mochilas, homens possíveis pastas, mulheres possíveis bolsas, se equilibrando na ponta dos pés, em possíveis sapatos de salto alto. Cada um vestido com a fragilidade de sua nudez.
Espalhava-se verdadeira multidão, do bairro a todos os lados da cidade, até onde a vista alcançava, dispersa no espaço, ocupando níveis altos, longe do chão da terra, como em edifícios, com arquivos e gavetas virtuais, disponíveis apenas ao toque do olhar. À medida que a distância crescia, os corpos iam se desconfigurando dos padrões humanos, perdendo o formato. Primeiro pareciam pássaros, depois moscas, e mais para a direção do Cais do Porto, para o centro da cidade, drosófilas. Bem ao longe, fundo, pairava apenas uma garoa cor de chumbo, engolida pela fenda do horizonte boquiaberto.
Um tanto de inquietação se derramava em seu peito, com um gosto meio amargo. O ridículo, o triste, e o real humano se entrelaçavam numa dança de ritmos incompatíveis. Parou um ônibus para embarcar passageiros, também despido de paredes e bancos, e chão e teto. Pessoas enfileiradas, pseudamente sentadas em possíveis bancos, e as que pseudamente se penduravam para entrar numa possível porta. E um pseudo motorista e uma pseudo direção, e um possível destino.
Voltou a atenção para o ninho morno de sua cama. Agora nenhum limite lhe barrava os sentidos. O azul do céu invadia seus olhos, filtrado pelas pessoas se movendo, acima, abaixo, dos lados. O cheiro de terra molhada subia dos canteiros regados pelo jardineiro até suas narinas e se derramava em suas papilas gustativas. As sirenes das construções, os motores dos veículos, o gorjeio dos pássaros, os latidos, as vozes das pessoas, tudo vinha como bigorna ao encontro das bigornas dos seus ouvidos. E o vento frio da manhã batia à sua pele, traçando o limite entre o seu corpo e a brisa.
Um sentimento de coisa inteira lhe cingia. E de pertença. Como se de repente, todas as incógnitas tivessem se diluído nos ruídos, nos cheiros, nos sons e na luz da manhã. Tudo estava absolutamente como devia ser, como a resolução de um teorema demonstrado em si mesmo.
Suspirou fundo e lentamente espichou-se em sua cama. A penumbra de repente se fez concreta, bem como as paredes, o chão e o teto, em seu quarto. E o absurdo urbano lhe chamou para o chuveiro. Pseudos pensamentos se derramaram no seu possível dia. Ergueu-se, com a sensação de muitos olhos sobre si. Acelerou seus movimentos, no exíguo espaço de 15 minutos. Precisava pegar o próximo ônibus. Não podia se atrasar para o trabalho.

Um comentário:

  1. Gostei dessa percepção do mundo, das pessoas... Nunca tinha visto por esse ângulo!
    Bjs

    Ana

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