quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Burro Beleza



Tenho tristeza e choro. O menino à noite, ontem, treze anos, conhece todas as letras, mas não lê. E eu na frente dele, debruçada sobre a mesa, armada de papel e lápis.

- Veja, é o A! Escreve primeiro o A. Não sabe o que quer dizer primeiro? Bom...isto é grave, já vamos ver. Onde começa esta palavra aqui? Não! Aí é o fim! Não sabe o que é começo? Não? Assim, oh, não tem nada neste papel, agora vou começar, vou escrever primeiro o A! Então quando digo primeiro o A, quer dizer que ele tem que estar à esquerda da outra letra. Entende?

Não, ele não entende. Às vezes sim, às vezes não. Nunca sei quando ele não entende e quando não quer entender. Não consigo pegá-lo, escorrega como um peixe. Repete mecanicamente, seguidas vezes, “A, de abelha, B, de bola”, mesmo que as palavras mostradas sejam amigo e beleza”.

Mostro um texto sobre o Burro Beleza. Estamos na letra B. Acho que não fui muito feliz na escolha do texto, porque um dia ele me disse que é burro. Entretanto, em vez do texto, ele se absorve no desenho do burro. Puxo-o de volta para o texto, apontando as palavras. Ele foge para a figura. Na figura o dono do burro puxa o animal por uma corda, mas ele está atolado na areia e nega-se a andar. Puxo-o para o texto. Escrevo, no verso de uma folha usada, sinais que não lhe dizem nada.

Ele a todo o momento se esfumaça. Está inquieto, quer ir embora pra casa.

- Fique, ainda falta meia hora. Está cansado?

Ele sorri, com o buço cheio de gotinhas de suor.

- Está bem, não quer mais ler, não é? O que você gosta de fazer? Desenhar? Bem, desenhe.

- Posso desenhá o burro?

- Claro!

Começa uns traços, olhando o desenho. Depois sobrepõe a folha branca sobre a figura do livro. A luz fraca pende do teto por um fio e sua cabeça faz sombra. Algo nele todo se afrouxa, e alguns traços vão surgindo.

Um esboço da cabeça do burro, focinho, olhos. Algo que seria a pança, que escorre em algo que talvez seriam pernas. Ofereço outra gravura igual, para que compare, ou copie.

- A novela começou?

- Acho que sim, mas o que queres com novela?

- É que a mulher da novela, o marido dela...Sabe o meu pai?

- Sei, vi teu pai lá hoje, quando fui te buscar pra aula. Ele foi te visitar?

Seu rosto iluminou-se. Mas isto na fração de tempo infinitesimal de um átomo, em qualquer massa. Encolhe-se logo, na segurança do escuro escorregadio que o reveste.

- Quando eu voltar pra casa, ele já foi embora...A mãe não deixa ele ficá. Mas ele vai pagá a minha mãe.

- Pensão?

- Sim. O meu irmão vai de tistimunha.

Pronto o desenho. Está lindo. Tem vida. Não é o burro, mas traços inacabados, abertos, que permitem a quem olha entrar em toda a possibilidade. Pedaços de um animal, ligados por uma corda a pedaços de um homem.

- Vamos escrever o título, ou queres escrever o que diz o homem, dentro deste balão?

- O balão.

- Bem.

- “Burro Beleza só quer moleza? Eia! Eia! Eia!”

Tenho tristeza. Primeiro o A! A ordem dos fatores não altera o produto, a não ser para quem escuta.

- Não sabes o que é primeiro? O A! De amor...

Um comentário:

  1. Uma homenagem àquele menino tão triste e tão calado, do Monte Cristo, em Floripa...

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