sexta-feira, 22 de junho de 2012

O pesadelo de Lolita











O ar era denso e a luz amarelada esmaecida parecia vir de dentro da madeira marrom-escuro dos pesados móveis antigos do quarto. A cabeceira de sua cama em brocado de seda rosa, Luiz XV, parecia exalar ainda a mornidão do seu sono desfeito por um despertar agitado e nervoso. Era difícil respirar o silêncio tombando nas paredes, no chão de parquet em losangos, nos longos corredores em trevas do sobrado e na possível rua, pálida sob a lua, Rua dos Machados, feita imagem nos temores de Lolita.

Sentia-se assustadoramente só. Não parecia o seu quarto acolhedor, lhe cobrindo e protegendo da amarga secura e dureza de sua madrasta, em tantas outras vezes. Era agora um vão oco, impossível de nidar, como um útero seco. Alba viajara com seu pai e só voltaria depois de 2 dias. Nunca ficara só, muito menos fim de semana, quando a empregada tirava folga. Olhou a pequena agenda, diário de sua madrasta, que descobrira no quarto dela e aproveitara sua ausência para pegá-lo e dar uma lida. Folheou ao acaso. Quem seria Lúcia, um pseudônimo de Alba? Largou entediada o pequeno livreto, e sentou-se na beira de sua cama.

Nos seus 13 anos de desassossego, desvalias e perdas, se habituara a não ser ninguém, que não viesse moldado pela aprovação alheia a si mesma. Pais “verdadeiros” mortos, de quem vagamente lembrava, mãe adotiva morta, de quem não queria lembrar, lhe restavam o pai adotivo e a madrasta, pelos quais não nutria simpatia nem gratidão. Lolita sentia-se ingrata, desamorosa, ave sem ninho, de origens turvas, do bagaço da fruta, no vulgo “bagaceira”. Mas graças à generosidade impagável de seus pais adotivos, poderia tornar-se gente “de bem”. Discurso de contínuo proferido, estas palavras constavam de suas certidões de nascimento, recitadas com frequência, quando agia de modo que não agradasse seus atuais progenitores. Aprendera que pra sempre seria duas. Uma que era, mas não podia ser, outra que não era, mas precisava ser.

Vestiu seu roupão de pelúcia rosa e antecipou-se pensando seus desabalados pés voando do corredor até a escada, pulando os degraus como em sonho, flutuando até o piso de baixo. Se conseguisse chegar à rua, atravessar o pátio, os jardins e ultrapassar os portões, cruzar a estreita rua, chegaria à casa da frente, de sua amiga, que morava com os pais. Diria do seu medo, e por certo ganharia abrigo.

Ouviu um estalido na direção do quarto do fundo. Sentiu-se tremer e não era de frio. Se restava alguma dúvida em fugir para os vizinhos da frente, neste momento teve certeza do que fazer. Abriu a porta pesada, que rangeu na dobradiça. Dirigira sempre, nas suas preces, mesmo que a destinatários ambíguos, o pedido para ver a alma de sua “mãe de verdade” que não conhecera. Mas, definitivamente, neste instante, suplicou que tal desejo fosse desconsiderado. Temia ver, apesar da escuridão espessa, um par de pés descalços cor de cera atrás das cortinas da janela, ou um vulto de homem de paletó preto, rasgado, plantado junto da parede, como um cabide mórbido, tal um palhaço triste e miserável, mas capaz de raptá-la para o além. Temia sentir mãos frias na sua nuca, ou um sopro, um bafo fétido, um gemido esvoaçante, como os véus das virgens gregas, destinadas ao fogo sagrado dos deuses.

Temia levar uma bofetada na cara, de mão transparente, etérea, como lhe contara uma amiga na escola, que acontecera com outra amiga. Temia ouvir gargalhadas pipocando pelas paredes, ver pedaços de miasmas, mas mais do que tudo, temia que algo a tocasse sutilmente. Que uma energia imponderável pudesse envolvê-la, imobilizá-la e apoderar-se do pouco seu que acreditava ainda ter de bom. Quando apagava a luz e ia deitar-se, subia rápido para seu leito, sempre imaginando que mãos geladas surgissem de súbito, debaixo da cama e segurassem seu tornozelo. Estava certa de que se apenas um toque do além a alcançasse, seria suficiente para ser possuída pelo demônio. Perder sua alma fraca e corrompida pelas origens desvalidas de uma família pobre para o poder das trevas era algo com o qual sentia-se definitivamente incapaz de lutar.

Pulou de dois e de três os degraus da escadaria em curva de “C” e jogou-se no andar térreo, correndo até a porta da cozinha. Ouviu passos lentos vindos de cima, macios nos tapetes de desenhos persas, e no trilho de feltro que revestia os degraus de pedra, escada a baixo. Destravou a porta de mogno e viu-se, sem bem saber como, pulando porta afora, na calçada de ladrilhos, a correr na direção do portão da frente. Virou à esquerda da porta da cozinha e novamente à esquerda, vencendo um pequeno corredor de grama úmida, entre muros altos, o paredão do sobrado e o céu estrelado, como veludo azul escuro, bordado de pedrarias. O perfil dos anões de jardim, deitados de bruços, parecia vivo, sombras debochando do seu pavor. Os passos atrás de si, desta feita, tomaram volume sólido. Antes de dobrar novamente à esquerda, para ganhar a saída, derrubou um latão de zinco cheio de folhas secas, na intenção de deter seu possível perseguidor.

Nervosamente puxou o trinco do portão de ferros pontudos e altos e este, facilmente abriu-se. Embora em hora inadequada, lembrou-se dos grandes portões pretos, em arcos prateados, do cemitério São Miguel e Almas, onde sua mãe adotiva repousava, desde seu enfarte fulminante, há 4 anos. Lembrou também do chamado dela “Lolita!”, quando todos deram as costas e voltavam do sepultamento, em procissão silenciosa, fria, em vultos enegrecidos por um luto ao qual a maioria não sentia,. O toc-toc de saltos ritmados nos ladrilhos regulares do chão, ao lado das paredes engavetadas de túmulos, fotos amarelecidas e escritos de bronze esculpido era o percurso de transposição do terceiro andar, em direção ao térreo – o edifício dos mortos.

Ela ficara para trás do grupo. Era a voz da mãe, com certeza, nem um instante duvidou, e tal era real que instintivamente virou-se para responder. Admirou-se de que ninguém olhara, respondendo ao chamado. Só ela olhou para o fundo em “L”, já longe, a esquina da gaveta da sua mãe, coberta por uma coroa fúnebre roxa. Mas uma ausência cinza pesada e fria se fazia entre os desenhos de folhas de louro em gesso branco nas pilastras das muretas tipo jardins romanos, ao longo daquela estrada morta. Por volta de um meio-dia nublado, um Bem-te-vi piou vazio o impossível das palavras dela, com voz de pássaro. Um sabiá em meio aos ciprestes apontados pro céu, piou longo e agudo. Lolita nunca escutara até então, com tanta clareza, a voz da solidão.

Ouviu o ruído de um tropeço no latão de folhas secas! Precisava correr, mas seus pés pesavam como chumbo. A lua filtrava em meio às árvores frondosas, no cordão da calçada. Um cabo de guerra começou-se a travar consigo. Uma corda puxada ferrenhamente por duas forças: uma para o abrigo da casa do outro lado da rua, outra, bizarra, lhe chamando para ser possuída. O terror lhe paralisava, mas ao mesmo tempo lhe prometia uma pertença, ainda que do mal, que lhe fascinava.

Mais uma vez, inoportunamente, lembrou das batidas amarelo- metálicas, tal como sinos ao longe, nas colinas dos livros que lia. Era o relógio de pêndulo da sala, alimentado à corda por uma chave em borboleta, martelando a cada quarto de hora, nos seus ponteiros dourados, na madrugada inteira do velório da sua mãe. Dormia num caixão preto, em cima da mesa de jantar, com seu vestido preto de festa, seus sapatos pouco usados de salto alto, seus olhos vítreos semi-abertos, seus cabelos curtos e crespos acaju, pintados há uma semana antes, e sua serenidade pálida nas faces de cera, com pequenas veias roxas, como num suspiro cansado de missão cumprida. O silêncio, entrecortado de cochichos, pairava sobre as cadeiras de pau marfim, braços torneados, de assento de veludo vermelho, dispostas ao canto das paredes, onde as pessoas sentavam, com cara de “tztz”.

Juntou todas as forças que lhe restavam e conseguiu transpor a distância para o outro lado da rua. Entretanto, sentiu uma respiração ofegando, talvez ao meio da rua ainda, em sua direção. Empurrou o portão de bronze da casa da amiga. A luz mortiça do lampião de jardim lançava sombras dos fícus, das cercas-vivas em arcos, das trepadeiras, tudo enegrecido pela noite, pelos muros e pelo terror. Como se ainda fosse possível, seu terror se tornou mais gélido e grotesco. Lembrou num último desespero de que sua amiga fora com os pais para a chácara. Encostou-se na coluna de alabastro da varanda e fechou os olhos, num gesto infantil de que tal atitude a tornaria invisível. Um chiado forte, como o mar espumando, encheu-lhe os ouvidos.

“Lúcia! Lúcia! Acorda! Tá dormindo aí no sofá, a televisão acabou, é madrugada!” .

Seu marido volta-se rumo à escada que o leva a seus aposentos.

Lúcia recosta-se, tentando organizar seus pensamentos. A tela da televisão formigando e chiando seco. Na pequena mesinha, debaixo do quebra-luz, está sua pequena caderneta, onde anota seus sonhos. Rabisca algumas palavras chave, para não esquecer o enredo do sonho. Uma sensação pesada lhe imobilizava os gestos.
De repente, a porta da frente se abre bruscamente, e um vento gélido balança as cortinas de voal de sua janela. Um vulto enorme, disforme, escuro e sufocante como fumaça adentra em sua direção, e um gemido trancado se espalha pela sala.

“Alba, Alba, Alba! Acorda, menina, vai pra cama, tens que levantar cedo...”

Alba levanta, trôpega, bêbada de sono e sobe a escada do sobrado antigo, em penumbra. Quando atinge o topo, solta-se a pantufa peluda do seu pé, e ela tropeça, despencando escada a baixo, num grito estridente.

Lolita! Chamou, meu bem? Mamãe está aqui... dorme em paz, amor meu! Não foi nada, só um sonho! Fico aqui, até você dormir, tá bom, meu anjinho?

Um suspiro longo e fundo percorre as paredes daquela casa, ao abrigo de uma rua sem saída. As madeiras do teto do sótão estalam. Dos porões exalam ruídos estranhos. É noite alta e o sono cai sobre seus habitantes.