sábado, 24 de setembro de 2011

Torre de Babel


Informação, pra virar conhecimento, tem que servir pra vida e ser aplicada. Se não for assim, é inútil. Vivemos num mundo atulhado de informações, que não servem pra nada. Cuidar do lixo, dar-lhe o destino adequado, também se aplica ao lixo intelectual. O micro planeta que somos, cada um, agradece...

Muitas vezes nos cremos sabidos, inteligentes, e pensamos que nem precisamos muito do outro, se nos mantivermos bem informados, intelectualmente alimentados.

“Entendemos” tudo, e podemos tocar nossa vida sozinhos. “Eu entendi tudo isto” é óbvio, desde que esteja na mesma língua e no mesmo horizonte cultural. Mas se aquilo que entendemos não servir para nos modificar para melhor, é uma carga inútil.

Entulhamos nosso entendimento de bonitas palavras, pensamentos sábios, como porcelanas raras, e usamos como trunfo, poder, status. E o que poderia ser um diálogo, um encontro, uma troca e um crescimento, vira um discurso de palavras vazias.

Vivemos num mundo solitário, onde todos entendem tudo, mas ninguém se entende mutuamente. A palavra pode ser um milagre, se tiver alma. Pra ser assim, precisa ir além do entendimento léxico. Uma chama solitária se auto consome e se extingue, sem ninguém para reacendê-la, sem ninguém a quem iluminar. Nossa chama se alimenta do outro.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A dança da vida



As relações entre as pessoas - marido e mulher, pais e filhos, irmãos, amigos, e tantas outras - são como uma dança, tem coreografia própria. Isto harmoniza as diferenças, preserva a beleza e a singularidade de cada um. De conhecimento e acordo prévio das partes envolvidas, executar movimentos coordenados não significa cristalização, condenação à mesmice. Sempre há novos passos e novas coreografias a aprender e a ensinar. Importante é ouvir, se mover, se enlaçar, sintonizar. Porque a graça e a beleza da vida, a mais bela sinfonia de todas, encontramos aprendendo a dançá-la.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O Burro Beleza



Tenho tristeza e choro. O menino à noite, ontem, treze anos, conhece todas as letras, mas não lê. E eu na frente dele, debruçada sobre a mesa, armada de papel e lápis.

- Veja, é o A! Escreve primeiro o A. Não sabe o que quer dizer primeiro? Bom...isto é grave, já vamos ver. Onde começa esta palavra aqui? Não! Aí é o fim! Não sabe o que é começo? Não? Assim, oh, não tem nada neste papel, agora vou começar, vou escrever primeiro o A! Então quando digo primeiro o A, quer dizer que ele tem que estar à esquerda da outra letra. Entende?

Não, ele não entende. Às vezes sim, às vezes não. Nunca sei quando ele não entende e quando não quer entender. Não consigo pegá-lo, escorrega como um peixe. Repete mecanicamente, seguidas vezes, “A, de abelha, B, de bola”, mesmo que as palavras mostradas sejam amigo e beleza”.

Mostro um texto sobre o Burro Beleza. Estamos na letra B. Acho que não fui muito feliz na escolha do texto, porque um dia ele me disse que é burro. Entretanto, em vez do texto, ele se absorve no desenho do burro. Puxo-o de volta para o texto, apontando as palavras. Ele foge para a figura. Na figura o dono do burro puxa o animal por uma corda, mas ele está atolado na areia e nega-se a andar. Puxo-o para o texto. Escrevo, no verso de uma folha usada, sinais que não lhe dizem nada.

Ele a todo o momento se esfumaça. Está inquieto, quer ir embora pra casa.

- Fique, ainda falta meia hora. Está cansado?

Ele sorri, com o buço cheio de gotinhas de suor.

- Está bem, não quer mais ler, não é? O que você gosta de fazer? Desenhar? Bem, desenhe.

- Posso desenhá o burro?

- Claro!

Começa uns traços, olhando o desenho. Depois sobrepõe a folha branca sobre a figura do livro. A luz fraca pende do teto por um fio e sua cabeça faz sombra. Algo nele todo se afrouxa, e alguns traços vão surgindo.

Um esboço da cabeça do burro, focinho, olhos. Algo que seria a pança, que escorre em algo que talvez seriam pernas. Ofereço outra gravura igual, para que compare, ou copie.

- A novela começou?

- Acho que sim, mas o que queres com novela?

- É que a mulher da novela, o marido dela...Sabe o meu pai?

- Sei, vi teu pai lá hoje, quando fui te buscar pra aula. Ele foi te visitar?

Seu rosto iluminou-se. Mas isto na fração de tempo infinitesimal de um átomo, em qualquer massa. Encolhe-se logo, na segurança do escuro escorregadio que o reveste.

- Quando eu voltar pra casa, ele já foi embora...A mãe não deixa ele ficá. Mas ele vai pagá a minha mãe.

- Pensão?

- Sim. O meu irmão vai de tistimunha.

Pronto o desenho. Está lindo. Tem vida. Não é o burro, mas traços inacabados, abertos, que permitem a quem olha entrar em toda a possibilidade. Pedaços de um animal, ligados por uma corda a pedaços de um homem.

- Vamos escrever o título, ou queres escrever o que diz o homem, dentro deste balão?

- O balão.

- Bem.

- “Burro Beleza só quer moleza? Eia! Eia! Eia!”

Tenho tristeza. Primeiro o A! A ordem dos fatores não altera o produto, a não ser para quem escuta.

- Não sabes o que é primeiro? O A! De amor...

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Foto grafando


Ele fotografa o chão todos os dias,

Com seus olhos de varredor,

Com sua roupa laranja,

Com seu carrinho de folhas secas.

Não vê de fora, não sai de si,

Não chora, nem ri.

Nem possui o seu trabalho.

Vê-se formiga no formigueiro,

Anônimo, acéfalo.

Três olhos, do nono andar,

fotografam seu suor,

begônias, bem-me-quer,

acácias e alamandas,

e sem o menor pudor

roubam-lhe a alma.. .

Zoom

Objetos anonimados

Ino’minados dias postos na rotina

capturo na retina dedos dos meus olhos

páginas folhadas ao acaso.

Janela aberta filtrada na cortina

diafragmo embevecida mente

luzes rastros libertos numa folha

álbuns do que passou

Clic!

Etiquetando


Meus versos embalados

sentimentos sufocados

em anos de rótulos

nos mercados de gênero$.

Escrito nas estrelas



Alni’lã

Betelgeuse

Aldebarã

anil manhã

que ainda não veio.

Maria

Mar’ia

Mari’ah

Madrugad’a fora

já nela ad’entro

no meu quarto.

Ciclo urbano


mp3005p2.jpg

brneo.wordpress.com
Parte I

Todo dia pego lotação. Manhãzinha cedo, ela sobe a ladeira, na esquina da minha rua, e vejo a obra. O pedreiro parado no esqueleto do portal, olhar vago, pousado em coisas transparentes, onde o foco é sempre mais além. Magicamente eu alcanço este foco, com outros olhos, onde as retinas são retas infinitas que nossos passos trilham com pés de sonho. Ele não me vê, mas eu sim. Capturo luz e sombras no côncavo do céu que me encobre e nos bolsos do meu casaco, nas minhas mãos geladas, que clicam uma fotografia virtual do desencontro sincopado de nossos níveis. O ritmo da música ecoando nas parietais do meu crânio, uníssono no córtex do meu cérebro, martela feito coração pulsando. E move a pedra do meu peito. Ressucita-me, mesmo que a partir de hoje, a partir de hoje...E pássaros enclausurados ganham liberdade. Fora, dentro e fora!

Tudo todo o dia parece igual. A rotina roda pesado compromissos previamente agendados pela necessidade de se enquadrar num mundo feito de pedras e pão. Desejos e coisas que estariam fora do alcance, sem a sagrada agenda, movem os meus passos e os de todos que povoam as ruas alienados de si mesmos.  Cada pedra, curva, motorista, passageiro, tudo igual. Mundo de vírgulas e ponto final. As árvores a décadas desfilam seus cabelos verdes pelo vidro embaçado de um comboio, neste meu porto alegre. O vento e a chuva e o calor e o frio e o sol. E as calçadas trincadas, ladeiras úmidas e os terrenos baldios. Mas tudo pode ser sempre novo, quando se renasce inocente.

A seiva que sobe nas veias destes troncos não é a mesma de outrora. Resíduos do meu banho rolam para o rio, estuário de toda a gente, e um pouco de mim verdeja nestas copas e alimenta o rodopio das folhas. Um pouco de mim flutua sobre as nuvens, se dilui e encharca a terra. Penetro narina a dentro dos desavisados que respiram pra sobreviver apenas. Um pouco de mim, pele morta que revive, me adentra, me alimenta e renova. Um pouco do pedreiro, vida de pedra, no seu olhar distante embevecido noutra dimensão. Os banhos todos do planeta se escoam, e também todos os suores e lágrimas e a excreção das vísceras de todo o ser vivo, debaixo do sol. E os elementos todos se fundem e fermentam e se transformam, na escuridão do húmus que fertiliza novas vidas. O frio do sol oculto se derrama nesta nave, aquecendo noutra face, cirrus-cúmulus-nimbus, águas de cima do firmamento.

Velhos são os olhos que não brilham, as pálpebras de pele agonizante que teimam em encardir a alma, que se fecham e se abrem, nem sempre em sintonia com o espetáculo. Cansaço de ser. De não ser. Órbitas vazias, mas iluminadas pela mesma chama. Eu, o pedreiro e o uni-verso inteiro.


Parte II

Todo dia pego o trem, noite escura ainda, olhos pesados, gosto amargo de café puro na garganta e de coisas que nem penso, pra não cair num poço sem roldana. No formigueiro da estação sou picado todo dia.  Uma coisa que arde não sei bem onde, dentro. Gosto meio enjoado, de quem comeu muito pastel de vento, feito com gordura já usada, que recende pra todo lado. Deve ser por isto que ninguém se vê, e fica transparente, sem ser alguém na multidão. Medo de contaminar ou de ser contaminado pelo ranço que arde na garganta. Os pés andam sozinhos, sem alma, corpo vazio. Mas dentro a chama treme em cada um, resto de fogo que ainda esquenta. Talvez um sopro do deus que tanto falam por aí.

Desço do trem e pego meu rumo noutro ônibus que me traz aqui. A caliça recebe meus pés de sapatos tortos e meu nariz já sente o cheiro de cimento pó, de cimento água, de cimento massa, de cimento fresco que evapora e me enche os pulmões. Coração duro deve nascer daí. Pedaços de caibros,  estacas e vigas vão se alinhando pra segurar mais um teto, que meu não é. Me encosto no portal e a minha mão toca no tijolo, dureza da parede que ergui. Que me segura.

Respirar de manhã cedo é bom. Paz, silêncio de uma rua de gente fina, longe das minhas faltas. Fico esperando um pouco as coisas que se repetem todo dia, porque nem sempre se repetem, já vi. Meu café da manhã se completa com o cachorro que me abana o rabo, e o passarinho que pia nos jardins, e os pequenos que passam para a aula. Tudo é espanto, parece sempre novo! Um inseto, uma criança, uma nuvem, me aparecem  como a primeira vez. E o meu corpo fica leve, vazio do que não tenho e sou feliz, nesta hora.

E vem a lotação todo dia. Aquela mulher na janela, fios pretos saindo dos seus ouvidos. Este tal de MP3, já aprendi. Muita porqueira triplicada. Tira as pessoas do ar, viram ET. Ela parece um manequim de cera, destes de loja, vista da janela. Mas sei que algo dentro dela está acontecendo, porque deve estar ouvindo música, que faz a gente voar.

Eu que nem quero isto... homem metido a passarinho pode se esborrachar! Mas... pensando bem, talvez até viesse a gostar, ficar sozinho comigo mesmo, dentro da minha cabeça, ou fora, sei lá. Uma vez escutei um destes aí, som bom pra caramba!

Quando a lotação vira na esquina de cima, tenho que pegar no dia. Ponho bota de borracha, capacete, viseira nos olhos, e sou eu que viro ET...




A justiça social não passa só pela igualdade de acesso aos bens materiais, mas antes pela igualdade de pele, sangue, sonhos e esperanças, contidos na diferença. Isto nos faz iguais.