sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Descompasso

Estava comodamente instalada no seu banco individual, olhando despreendidamente as coisas lá fora. A música escutada já por vários dias, fluindo nos finos fios pretos embutidos em seus ouvidos, era a mesma: Cânon in Z, execução no piano de Tay Zonday. Perfeita. Mesmo sendo a trocentésima vez de escuta, sempre tinha o poder de mover seu sangue em ondas, de forma que diluia todos os nós dos seus músculos, e a deixava entregue e cativa a cada toque mágico de todos os dedos do artista. Tons graves destampavam do seu poço uma profundidade intrinsecamente obscura de suas emoções. Tons altos lhe conferiam asas libertadoras, para a luz e o espaço imponderáveis pela razão.

Percorrendo magistralmente estes degraus com a gema viva de seus dedos, passos da alma do artista lhe abriam o portal mágico da unificação, onde toda a agonia pelo saber cessa. Isto a fazia sem tamanho, imensurável, no macro ou no micro cosmos, condição intraduzível em qualquer língua falada. Ora era o mar em sincronia lhe emergindo gigantesco preso à gravidade da terra, ora a lua iluminando o lado oculto, lhe extravasando água salgada, contida à beira de portas abertas, olhos secos à espera...

Bendita sejas, ó alma perfeita escorrendo em dedos perfeitos, numa vontade perfeita! Podia escutar cada toque separadamente, e em conjunto. Podia distinguir os dedos da mão direita e os da mão esquerda, em desabalada fuga, simultânea ou separadamente. E ainda podia ver o som de cada tecla em percussão transpirando nos muros velhos das ruas, nas árvores copiosamente verdes, nos sincopados rostos dos que esperavam a condução certa para seu destino traçado, plantados com seus pés inquietos, debaixo de um abrigo de zinco. E em cada rosto, em cada corpo, em cada gesto, pairava a nuvem transparente de suas almas iluminadas pela certeza da eternidade.

Dentro da lotação era um pouco diferente. As pessoas pareciam mergulhadas em seus propósitos, uns mais imediatos, como simplesmente chegar ao ponto na hora certa. Outros mais a longo prazo pareciam percorrer seus rumos com seus músculos faciais rígidos, e não com os pés. Carregavam aos ombros o peso dos seus dias e um comportamento viciado de imediatismo mantinha-os sempre alertas, como prontos a responder a uma inesperada exigência do acaso. Não sabiam do magistral concerto que de Pachtlbel a Zonday apaziguava qualquer discórdia, em dois ouvidos ali presentes. Mesmo assim, pairava sobre todos uma névoa, tipo “Eu vos dou a minha Paz!”. Sim, era isto. A luz diáfana iluminava cada canto obscuro. Ela estava dentro e ela estava fora, em todos os sentidos.

Decidira naquele exato momento deixar um último pedido, quando de sua morte. Queria esta música no seu funeral. Porque nada traduzia mais o que sabia de si mesma do que aquela música, naquela execução. Era a sua vida, águas serenas ou oceano turbulento, se enlaçando pela vida afora, no inesperado e surpreendente acaso com que a vida armava-se para colorir-lhe ou turvar-lhe os dias, desde que nascera, seja do sombrio gelado da morte de seus pais, antes dos 5 anos, ao calor irradiante e majestoso do nascimento de seus filhos, a partir dos 18. Imaginou os amigos, filhos e demais parentes, ouvindo aquela música, por vezes aparentemente desenfreada, mas contida em exímios movimentos calculados na exatidão de um com passo quatro por quatro. Era ela, toda. Mas será que eles entenderiam isto? Ou alguns pensariam “eis quem viveu louca e louca morreu. Que tem a ver esta música com este momento?”

Quatro filhos, quatro vintenas ainda um tanto longe por se cumprirem, quatro netos por enquanto, dois casamentos (que afinal é divisor de 4). Embora se soubesse fraca em números, reconhecia que tudo é matemática. A vida o é. O escoar de milionésimos de segundos que se acumulam em séculos é a prova disto. O inexorável caminho percorrido nas células de sua pele enrugando, seus cabelos embranquecendo... seus ossos virando esponja, tudo números, em combinações químicas de elementos que vão se defasando...Sua vida era quatro por quatro, com possíveis divisores de compassos.

Imaginou lágrimas sentidas, algumas culpadas, outras aliviadas pela sensação do dever cumprido. E desistiu da intenção. Não queria corromper tão bela música, tão majestosa execução, com mal entendidos. Carregaria em suas moléculas mortas em desalinho a ressonância daquela vida compactada numa melodia. E o sangue evaporado na fumaça de seus ossos em cremação se aninharia em outras narinas, e encontraria outros neurônios, em outras conexões.

Compreenderiam Cânon, in D (ré maior), não como auto condenação de um réu que nos imputamos por viver sem entender. (O sentido que buscamos pra viver está nas coisas? Somos nós que o colocamos? Ou nada disto importa?...) Compreenderiam Canon in Z, de Zen, de Zero, de paZ, de Zoar, de beleZa, de faZer, de OZ, de Zeus, deus de todos os deuses. E ao contrário de suas frustradas expectativas para sua própria eternidade, a melodia continuaria viva, embalando outra lucidez, outra alma soprada pela grandiosidade de viver.

Interrompendo seu mergulho em si mesma, uma freada brusca lhe puxou para a realidade. Algum neurônio bloqueou a melodia nalgum espaço de seu cérebro, à prova de som. Num silêncio avassalador viu e previu tudo num milionésimo de segundo, friamente calculado pela precisa e milagrosa exatidão de suas sinapses. O sinal fechou para sua lotação, numa esquina, que desembocava numa principal. Motores canibais da faixa perpendicular à esquina arregaçaram suas bocas, emitindo um ruído feroz, como a querer recuperar séculos perdidos para chegar a rumos não sabidos por ela. Uma fileira da via principal parara num congestionamento. As outras fileiras andavam. Mas o menino atravessando a rua não viu. Seus neurônios não consideraram todas as variáveis, talvez em defasagem matemática. Tinha 11 ou 12 anos.

Ao ultrapassar a fileira parada, adentrou na faixa vazia, por uma nesga de segundo. E ela viu o futuro imediato e irrevogável daquela cena. E nem sequer deu tempo de gritar. Mesmo que de nada adiantaria. Entretanto, brotou de suas cordas vocais um gemido como um frêmito: ai, Jesus, Jesus, Jesus! E o choque de diferentes pesos e velocidades arremessou seu corpo franzino para o alto e ele rodopiou no ar, numa cambalhota circense e tinha uma enorme pedra de sólido granito ao cordão da calçada e sua cabeça num ângulo de 45 graus em relação à pedra iria se esborrachar em sua quina e ele bateu no asfalto como uma bola de borracha e desvirou-se no espaço retornando à condição de bípede e como um João bobo de plástico inflado ficou de pé indignado aflito pálido e tímido. E seguiu seu rumo.

Um menino, meu Deus, uma criança...nasceu de novo! Tu és bom, Tu és bom! Bem dito menino renascido, bendita mãe que nada viu, bendita a vida...

Olhou dentro de seu veículo as pessoas indignadas, gesticulando, o motorista apontando, tecendo comentários. Sim, todos estavam obviamente pasmos, pois um menino quase morrera, que coisa estúpida... Ó Deus, um menino se salvara, isto era o que importava!

Cânon voltara a verter em seus ouvidos, como um oceano turbulento, traçando uma parede de isolamento acústico entre ela e as pessoas da lotação. Sentiu vontade de compartilhar seus nervos em frangalhos pela morte eminente de um menino. O que estariam comentando os demais passageiros? Todos tinham visto o ocorrido, como que de camarote, num teatro de bancos amolfadados. Como estariam seus corações frente a tudo aquilo?

Tirou os fones dos ouvidos.

- Claro, ela estava errada. Julgou que a lotação ia avançar o sinal amarelo e quis ganhar a vez!

- Sim, e ainda se achou cheia de razão!

- Mas eu não tive culpa, vocês viram...parei bem na esquina, aguardando a minha vez...

- Mas a culpa de ultrapassar o sinal foi dela, tá na cara!

- De certo comprou a carteira...

- Está cada vez m ais difícil dirigir nesta cidade...

Nenhum outro comentário. Só seu patético espanto deixou-a por um breve instante suspensa a equilibrar-se num fio. Como se tivessem se rompido os elos que lhe encadeavam os pensamentos. Fora por um lapso de tempo de sua nave racional, duvidava de sua lucidez.

Uma fenda abissal entre o seu coração e aquelas bocas todas tragou-lhe de volta ao seu banco executivo. Cânon em (D)escompasso. Mundo oco, homens de lata, espantalhos tristes, meninos perdidos ...

Com o coração também em descompasso, voltou os fones aos ouvidos, encolhendo-se na bolha de sons que a protegiam, como num útero cósmico.

www.youtube.com/watch?v=RSCzMT8IMME - link para ouvir a execução

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Vida além da razão


Para sempre, nunca mais, meu eu interior! Piada. Não dominamos a vida. Pesa-nos demais carregar a eternidade, do modo como a entendemos, e carregá-la amarra nossos movimentos. É a velha auto-suficiência, lá da queda de Adão, nos condenando ao exílio. Por outro lado, constância nos é mais leve e possível. Ainda que possamos pensar de início que constância significa amarrar-se a um propósito único, seu sentido mais profundo está ligado à atitude frente ao transformar-se contínuo das coisas. Eternidade está fora do nosso alcance, mas constância não.

O espanto, a admiração e o prazer brotam na criança diante do mundo, e conforme vamos nos tornando adultos, o espanto vai se transformando em medo, a admiração em dúvida e o prazer em angústia.

Felizmente, a criança sempre vive em nós, apesar de todas as forças contrárias. A criança vive uma coisa de cada vez, e não atribui significados pessoais à vida. Isto talvez signifique deixar a vida fluir como na filosofia dos anos 60 e 70, porém sem a desimplicação de um cérebro entupido de fumaça ou o sangue intoxicado de alucinógenos.

Deixar a vida fluir significa deixar que as coisas sejam o que são. Envolvê-las nos nossos significados faz parte da condição humana, mas prender-se a elas não. Viver aprisionado a uma morte, a uma ideologia, a um princípio ou a um pré-juízo nos tolhe o prazer de renovar constantemente nossa vida.

O que nos dá unidade e consistência não é o apego, mas o desapego, pois vamos nos constituindo, à medida que fluímos com a vida. Entretanto, confiar e esperar, ou em outras palavras, e esperança, são atitudes necessárias para reverter o medo, a dúvida e a angústia. Garras afiadas nos fixam como que em rochas, quando o desafio é abrirmos mão da nossa compreensão sobre as coisas e nos colocarmos como aprendizes frente à vida.

E muitas são nossas compreensões equivocadas sobre como o mundo é. Exemplo disto é a noção que temos de “mundo interior” e “mundo exterior”, que nos leva a uma dicotomia e a uma mutilação de ser. Interior e exterior, entre outros conceitos, é um modo apenas “didático” de compreendermos as coisas, na abstração. Abstrair significa recortar o que em si não se recorta. Tirar uma parte do todo, a qual, sozinha, nada significa.

Lamento abalar as estruturas egóicas de certos modos de ver a vida, mas eu interior não existe, a não ser como ego-ismo, derrame do ego sobre todas as coisas, ou confinamento em si mesmo. Existe um mundo dado e uma compreensão sobre ele. Existe o vínculo entre a chama da consciência e o meio do qual se alimenta esta chama. E este vínculo não está fora nem dentro de um corpo, mas em cada átomo do universo. Conforme se organizam estes átomos ou suas partículas, temos a diversidade infinita da vida, animada e inanimada.

Perceber o mundo em exterior e interior resulta dos sentidos limitados que constituem nosso corpo. Confinarmo-nos em nossa compreensão de espaço-tempo nos aprisiona numa redoma de auto suficiência enganadora. O limite do dentro e do fora, quando se refere ao âmago de nosso próprio ser, à nossa alma, ao nosso ser-estar no mundo, é um chão propício a enraizar medo, insegurança e prepotência, e, o pior de tudo, solidão.

Vivemos todos imersos no mesmo oceano de vida, animada e inanimada aos nossos sentidos. Não há dentro nem fora, há foco e desfoco, conforme nosso olhar e nossa consciência. Dentro de nós existe apenas sangue, músculos e ossos, limitados pela pele. O que ultrapassa esta condição é a chama da consciência, imersa nisto e que transcende o limite de um corpo.

Mas não estamos condenados ao limite de nossa compreensão. Somos dotados da capacidade de ir além do simples método racional de apreender o mundo. Somos capazes de voltarmos às coisas mesmas e à nossa relação com tudo isto, e reaprendermos de forma contínua. Conhecer e aprender nunca se esgotam, seja com relação ao que for.

Para sempre e nunca mais resultam de uma visão parcial das coisas. Porque queremos eternizar determinadas coisas e extinguir determinadas outras, por meio de nossa vontade. Mas o que é eterno é o fluxo do espetáculo da vida e disto não podemos nos apropriar. Deus colocou uma espada de fogo entre nós e a árvore da vida. Não podemos provar de seus frutos, sem antes digerirmos os frutos da árvore da ciência do bem e do mal. Nosso livre arbítrio diz respeito somente a nós mesmos, ao nosso próprio movimento e às nossas escolhas, não se estende ao mundo em que estamos mergulhados. Quando isto acontece, vira dominação ou submissão.

Eternidade e constância não são paralelas que nunca se encontram. Quando ruem as paredes do mundo interior e do mundo exterior, se encontram e se unificam. E para nosso pasmo, o espanto, a admiração e o prazer são irracionais, porque a emoção assim o é. Brotam da espontaneidade das coisas, que são irracionais por si mesmas e tem seu movimento próprio. A racionalidade é um atributo nosso e nos vem da relação com as coisas, não são as coisas que brotam da nossa racionalidade. Existe vida além de nós. E fazemos parte dela. Existe vida além do nosso entendimento.

sábado, 15 de outubro de 2011

Pseudônimo

Primeiramente despiu-se das paredes do seu quarto, do chão e do teto. Ficou assim, em sua cama, flutuando em cima do quarto do oitavo andar, e ao abrigo das coisas que flutuavam no décimo andar. Em seguida achou melhor despir-se de todas as paredes do seu apartamento. Sentiu um enorme alívio ao sopro do ar da manhã no seu cabelo e no lençol que lhe cobria. Suspirou profundamente frente à luz do dia que preenchia por completo todos os espaços.
Viu os vizinhos de baixo e os vizinhos de cima, em suas lides matinais. Mais estranho os de cima, pois os via dos pés para a cabeça. De baixo para cima os perfis ficam paradoxais. As nádegas parecem puxadas para baixo, se amontoam pesadas nas coxas que como troncos sustentam uma silhueta robusta de braços finos e pés grandes, meio em descompasso, como num quadro de Tarsila.
A roupa ideal, o peso certo, manequins, modelos, cinturas, bustos, músculos rígidos, nada disto. Via-os nus, em seus banhos, despidos de seus recursos. Os meninos, o pai, a mãe, todos corpos tão somente, carne molhada e ensaboada, numa humildade alienada, simples e resoluta como a água que escorria na pele e rolava abaixo, formando uma lâmina no chão transparente que a tudo sustentava.
Achou melhor ainda despir todo o prédio, e os prédios vizinhos, e mesmo a cidade. Pronto! Agora estava bom. Também despiu tudo de móveis e utensílios, deixando o espaço nu e livre, como na criação. Levitando no plano horizontal de sua cama, via camadas sobre camadas, chão, paredes e tetos transparentes, e as pessoas se movendo, umas sobre as outras, alheias ao seu olhar. Pessoas soltas no espaço, em diferentes planos de altura e profundidade, umas de pé, andando de um lado para outro, outras como que sentadas, levando a mão à boca, segurando coisas invisíveis. Vizinhos uns dos outros, se punham frente à frente, indiferentes, mexericando coisas em possíveis armários, gavetas, prateleiras ou balcões.
Julgando-se protegidos pela invisibilidade que supunham nas paredes, coçavam-se em partes íntimas, faziam micagens, miravam-se vaidosamente nos espelhos, junto a movimentos de se vestirem ou despirem, pôr sapatos, se pentearem, pegarem objetos. Mas tudo apenas em movimentos puros, como na caricatura de um amanhecer burguês, na mímica de uma dança previamente coreografada.
Podia ver o porteiro lá embaixo, pseudamente sentado, falando ao telefone, pressionando botões de abrir e fechar possíveis portões, tudo apenas gestual. Crianças carregando possíveis mochilas, homens possíveis pastas, mulheres possíveis bolsas, se equilibrando na ponta dos pés, em possíveis sapatos de salto alto. Cada um vestido com a fragilidade de sua nudez.
Espalhava-se verdadeira multidão, do bairro a todos os lados da cidade, até onde a vista alcançava, dispersa no espaço, ocupando níveis altos, longe do chão da terra, como em edifícios, com arquivos e gavetas virtuais, disponíveis apenas ao toque do olhar. À medida que a distância crescia, os corpos iam se desconfigurando dos padrões humanos, perdendo o formato. Primeiro pareciam pássaros, depois moscas, e mais para a direção do Cais do Porto, para o centro da cidade, drosófilas. Bem ao longe, fundo, pairava apenas uma garoa cor de chumbo, engolida pela fenda do horizonte boquiaberto.
Um tanto de inquietação se derramava em seu peito, com um gosto meio amargo. O ridículo, o triste, e o real humano se entrelaçavam numa dança de ritmos incompatíveis. Parou um ônibus para embarcar passageiros, também despido de paredes e bancos, e chão e teto. Pessoas enfileiradas, pseudamente sentadas em possíveis bancos, e as que pseudamente se penduravam para entrar numa possível porta. E um pseudo motorista e uma pseudo direção, e um possível destino.
Voltou a atenção para o ninho morno de sua cama. Agora nenhum limite lhe barrava os sentidos. O azul do céu invadia seus olhos, filtrado pelas pessoas se movendo, acima, abaixo, dos lados. O cheiro de terra molhada subia dos canteiros regados pelo jardineiro até suas narinas e se derramava em suas papilas gustativas. As sirenes das construções, os motores dos veículos, o gorjeio dos pássaros, os latidos, as vozes das pessoas, tudo vinha como bigorna ao encontro das bigornas dos seus ouvidos. E o vento frio da manhã batia à sua pele, traçando o limite entre o seu corpo e a brisa.
Um sentimento de coisa inteira lhe cingia. E de pertença. Como se de repente, todas as incógnitas tivessem se diluído nos ruídos, nos cheiros, nos sons e na luz da manhã. Tudo estava absolutamente como devia ser, como a resolução de um teorema demonstrado em si mesmo.
Suspirou fundo e lentamente espichou-se em sua cama. A penumbra de repente se fez concreta, bem como as paredes, o chão e o teto, em seu quarto. E o absurdo urbano lhe chamou para o chuveiro. Pseudos pensamentos se derramaram no seu possível dia. Ergueu-se, com a sensação de muitos olhos sobre si. Acelerou seus movimentos, no exíguo espaço de 15 minutos. Precisava pegar o próximo ônibus. Não podia se atrasar para o trabalho.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Penso, logo existo? (O tempo e o vento II)


Quando olhamos pela janela, parece-nos ver o tempo lá fora, solto, envelhecendo as árvores, acinzentando os prédios, pondo musgo ente os paralelepípedos, soprando o vento sobre as folhas secas, embebido em tudo, como se fosse um ente dotado de força, identidade e inteligência. Mas não é assim.

O tempo está em nós. As coisas são apenas coisas, e as coisas acontecem. Acontecer é se mover, mover é transformar. O vento é só vento, e as folhas secas, só folhas secas. Nem sequer isto, porque lá fora da janela acontece um fenômeno completamente livre de qualquer definição, independente de nós. Até mesmo fenômeno já é algo que estamos nominando.

Somos nós que pomos significado, e ordem nas coisas. Se nos apropriamos do que acontece, fazendo uma história (passado, memória) ou antecipamos o que ainda não aconteceu (futuro) isto é um ato humano. Entender isto nos livra da milenar polêmica entre os filósofos, que discutem se a realidade existe, ou se é fruto da nossa mente.

Ora, ninguém arriscaria por em prova esta dúvida, jogando uma pedra para cima e não saindo de baixo. Isto é óbvio, a realidade existe, e eu existo nela. Mesmo que fosse fruto da nossa mente, ainda assim existiria de alguma forma. Porque a lógica da morte e da transformação está aí, nos governando. Não porque penso, Monsieur Descartes, mas porque existo tal qual as coisas, e penso sobre elas. E porque penso sobre elas, não sou uma coisa igual às outras coisas.

Pensar é uma forma também de se mover e transformar. Mas as coisas e a nossa relação com elas é que são a fonte do nosso pensamento, e não o pensamento que é fonte das coisas. Tente pensar alguma coisa, que antes não tenha sido coisa no mundo, e que não se ligue a nós por palavras. Infelizmente, nada é inédito, como possa alguém querer ou pensar.

Reeditamos continuamente o mundo, pelos sentimentos e pelo pensamento. Primeiro nos deparamos com as coisas que nos rodeiam, e elas nos invadem, com sons, imagens, texturas, sabores, cheiros. Então pensamos sobre isto, e para pensar, um instrumento precisa ser construído: a palavra.

Pensar é se articular com a realidade, recriada pelos sentidos e expressa pela palavra. Esbarramos com as coisas, que se inserem e se infiltram em nós, e nós as envolvemos com nossos atributos humanos. Criamos outro espaço, virtual, onde podemos nos comunicar, entre humanos, com atitudes, gestos, ações e palavras, de saberes com saberes.

Mas a todo o instante precisamos checar nosso discurso próprio e/ou do outro com as coisas concretas, para não nos perdermos num mundo irreal. As palavras dizem do entendimento humano sobre as coisas, mas nem sempre são fiéis às coisas. Nosso saber do mundo nem sempre coincide com o que o mundo é.

Por isto, nossa humanidade é constituída entre os humanos. Não nascemos humanos, mas humanizáveis. Pensar e falar é um processo único, que se constitui no mundo, entre as coisas e as pessoas. Coisas, pessoas e palavras, com todo seus sentidos e significados, advindos de forças da natureza e de ações, nos fazem quem somos. Logo, primeiro existo, depois penso. Penso, porque existo.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O tempo e o vento...



A gente pensa o tempo como algo abstrato. Uma força que nos domina, que nos escorre pelos dedos e deixa marcas na nossa pele. Mas abstratos são os dias e as horas, porque são convenção humana.


O tempo é substância concreta, é exclusivamente o movimento das coisas, os acontecimentos, os fatos, constituídos de pessoas que se esbarram, bichos e plantas, astros, planetas, terra, luz e sombras, guerras, sangue, risos e lágrimas. É este movimento que a gente tenta pôr em caixinhas, conforme nossas limitações físicas, e ordena em antes e depois.


E uma sucessão de antes e depois nos pesa nos ombros e nos envelhece. Mas não é o tempo que anda, lento ou rápido. O tempo não existe, em si, apenas para nós, na nossa compreensão. As coisas se modificam sem trégua, e nós no meio delas. Eterna mente.