sexta-feira, 13 de abril de 2012

Parto de rua



Vi dois fetos na Rua da Praia, no chão, rolando. Mas dois fetos adultos, meio como em Benjamin Button, porém ainda jovens. Vestiam uma malha cor da pele, colada no corpo. Uma mulher, cabeça raspada, e um homem, ambos franzinos. Tinha um colchonete quadrado no chão, a título de útero, onde começaram a encenação. E um círculo de gente, grande e aberto, como em respeito à vida, foi se formando. Busquei uma brecha, e me plantei a olhar. Muitas fotos, e filmagens anônimas. Mas comigo eram só meus olhos e pensamentos, instrumentos para esculpir sentimentos e idéias, signos, significantes, significados.

Ambos os fetos começaram a fazer movimentos amnióticos. Impressionante como pareciam flutuar naquele chão duro. De fundo, numa caixa de som, os batimentos cardíacos, conduzindo aos primórdios tribais, ao transe de olhar vítreo, mas quente, nas órbitas avermelhadas dos atores.

Mas mais impressionante ainda era o encaixe virtual dos corpos, rolando, encolhendo, espichando, ora parecendo fluir de uma coreografia exaustivamente ensaiada, já diluída no sangue, ora parecendo brotar em gestos espontâneos. Seus movimentos, paradoxalmente desconexos e harmoniosos, não se chocavam.

Era como um jogo de tensão e leveza, programação da natureza orgânica e acaso, numa mão crispada de um braço que se alongava ao infinito, num pé de tendões hirtos que se encurvava sobre si mesmo. Pareciam tatear sob um véu de pele translúcida que lhes encobria. E passavam, um pelo outro, apenas a milímetros.

Minha expectativa de que se tocassem era quase um apelo.

Lembrei das minhas gestações idas. Aquela movimentação de corpos anônimos, apenas homem e mulher, ligados ao chão de pedra, pelo cordão da gravidade,  reconstituía o meu ventre túrgido, desconfigurado de repente pelo alongamento súbito dentro de mim de algo que tinha vontade própria, e não era a minha. Meia esfera sólida de carne, se projetando, como o planeta se desprendendo da sua órbita.

Me perguntei o quanto haveriam de ter pesquisado e estudado os movimentos fetais, para a representação. Mesmo assim, não eram fruto apenas de todo o estudo possível. Brotavam do meio de seus nervos e veias, enraizadas na terra e se derramavam nos braços, e pernas, e mãos, e dedos.

Movimentos frágeis de mulher. Um ou outro tremor, como uma descarga elétrica neuronal intempestiva, por vezes estremecia em ondas pela pele. Seios pequenos soltos e moles, debaixo da malha, ora enrodilhava de bruços ou de lado, ora rasgava o espaço com os dedos em garra. Erguia-se encurvada em genuflexão sobre si mesma, e se transformava em puro equilíbrio sobre o fêmur.

O homem franzino tinha descargas mais freqüentes. Seus movimentos, embora frouxos, provinham de uma face Yang. Parece que se desdobravam com esforço de um ímam poderoso no seu âmago. Uma luta entre o absorver-se em si mesmo, na escuridão, e o explodir para além do limite dado.  Eu apostava num gesto descuidado, mas não vinha.

Algumas pessoas desistiam e iam embora. “Ah, é só isto, sempre!”

Eu permaneci. Até a mulher nascer, e se embrenhar no convívio dos que lhe esperavam com um roupão, abraços e conforto a um recém-nascido.

O homem ainda se contorcia em espasmos, no calçadão. Os olhos gelatinosos, como poças escuras em órbitas de meias pálpebras, pareciam, a um só tempo, olhar pra dentro e pra fora de si mesmo.  Tava difícil nascer. Não esperei.

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