Estava comodamente instalada no seu banco individual, olhando despreendidamente as coisas lá fora. A música escutada já por vários dias, fluindo nos finos fios pretos embutidos em seus ouvidos, era a mesma: Cânon in Z, execução no piano de Tay Zonday. Perfeita. Mesmo sendo a trocentésima vez de escuta, sempre tinha o poder de mover seu sangue em ondas, de forma que diluia todos os nós dos seus músculos, e a deixava entregue e cativa a cada toque mágico de todos os dedos do artista. Tons graves destampavam do seu poço uma profundidade intrinsecamente obscura de suas emoções. Tons altos lhe conferiam asas libertadoras, para a luz e o espaço imponderáveis pela razão.
Percorrendo magistralmente estes degraus com a gema viva de seus dedos, passos da alma do artista lhe abriam o portal mágico da unificação, onde toda a agonia pelo saber cessa. Isto a fazia sem tamanho, imensurável, no macro ou no micro cosmos, condição intraduzível em qualquer língua falada. Ora era o mar em sincronia lhe emergindo gigantesco preso à gravidade da terra, ora a lua iluminando o lado oculto, lhe extravasando água salgada, contida à beira de portas abertas, olhos secos à espera...
Bendita sejas, ó alma perfeita escorrendo em dedos perfeitos, numa vontade perfeita! Podia escutar cada toque separadamente, e em conjunto. Podia distinguir os dedos da mão direita e os da mão esquerda, em desabalada fuga, simultânea ou separadamente. E ainda podia ver o som de cada tecla em percussão transpirando nos muros velhos das ruas, nas árvores copiosamente verdes, nos sincopados rostos dos que esperavam a condução certa para seu destino traçado, plantados com seus pés inquietos, debaixo de um abrigo de zinco. E em cada rosto, em cada corpo, em cada gesto, pairava a nuvem transparente de suas almas iluminadas pela certeza da eternidade.
Dentro da lotação era um pouco diferente. As pessoas pareciam mergulhadas em seus propósitos, uns mais imediatos, como simplesmente chegar ao ponto na hora certa. Outros mais a longo prazo pareciam percorrer seus rumos com seus músculos faciais rígidos, e não com os pés. Carregavam aos ombros o peso dos seus dias e um comportamento viciado de imediatismo mantinha-os sempre alertas, como prontos a responder a uma inesperada exigência do acaso. Não sabiam do magistral concerto que de Pachtlbel a Zonday apaziguava qualquer discórdia, em dois ouvidos ali presentes. Mesmo assim, pairava sobre todos uma névoa, tipo “Eu vos dou a minha Paz!”. Sim, era isto. A luz diáfana iluminava cada canto obscuro. Ela estava dentro e ela estava fora, em todos os sentidos.
Decidira naquele exato momento deixar um último pedido, quando de sua morte. Queria esta música no seu funeral. Porque nada traduzia mais o que sabia de si mesma do que aquela música, naquela execução. Era a sua vida, águas serenas ou oceano turbulento, se enlaçando pela vida afora, no inesperado e surpreendente acaso com que a vida armava-se para colorir-lhe ou turvar-lhe os dias, desde que nascera, seja do sombrio gelado da morte de seus pais, antes dos 5 anos, ao calor irradiante e majestoso do nascimento de seus filhos, a partir dos 18. Imaginou os amigos, filhos e demais parentes, ouvindo aquela música, por vezes aparentemente desenfreada, mas contida em exímios movimentos calculados na exatidão de um com passo quatro por quatro. Era ela, toda. Mas será que eles entenderiam isto? Ou alguns pensariam “eis quem viveu louca e louca morreu. Que tem a ver esta música com este momento?”
Quatro filhos, quatro vintenas ainda um tanto longe por se cumprirem, quatro netos por enquanto, dois casamentos (que afinal é divisor de 4). Embora se soubesse fraca em números, reconhecia que tudo é matemática. A vida o é. O escoar de milionésimos de segundos que se acumulam em séculos é a prova disto. O inexorável caminho percorrido nas células de sua pele enrugando, seus cabelos embranquecendo... seus ossos virando esponja, tudo números, em combinações químicas de elementos que vão se defasando...Sua vida era quatro por quatro, com possíveis divisores de compassos.
Imaginou lágrimas sentidas, algumas culpadas, outras aliviadas pela sensação do dever cumprido. E desistiu da intenção. Não queria corromper tão bela música, tão majestosa execução, com mal entendidos. Carregaria em suas moléculas mortas em desalinho a ressonância daquela vida compactada numa melodia. E o sangue evaporado na fumaça de seus ossos em cremação se aninharia em outras narinas, e encontraria outros neurônios, em outras conexões.
Compreenderiam Cânon, in D (ré maior), não como auto condenação de um réu que nos imputamos por viver sem entender. (O sentido que buscamos pra viver está nas coisas? Somos nós que o colocamos? Ou nada disto importa?...) Compreenderiam Canon in Z, de Zen, de Zero, de paZ, de Zoar, de beleZa, de faZer, de OZ, de Zeus, deus de todos os deuses. E ao contrário de suas frustradas expectativas para sua própria eternidade, a melodia continuaria viva, embalando outra lucidez, outra alma soprada pela grandiosidade de viver.
Interrompendo seu mergulho em si mesma, uma freada brusca lhe puxou para a realidade. Algum neurônio bloqueou a melodia nalgum espaço de seu cérebro, à prova de som. Num silêncio avassalador viu e previu tudo num milionésimo de segundo, friamente calculado pela precisa e milagrosa exatidão de suas sinapses. O sinal fechou para sua lotação, numa esquina, que desembocava numa principal. Motores canibais da faixa perpendicular à esquina arregaçaram suas bocas, emitindo um ruído feroz, como a querer recuperar séculos perdidos para chegar a rumos não sabidos por ela. Uma fileira da via principal parara num congestionamento. As outras fileiras andavam. Mas o menino atravessando a rua não viu. Seus neurônios não consideraram todas as variáveis, talvez em defasagem matemática. Tinha 11 ou 12 anos.
Ao ultrapassar a fileira parada, adentrou na faixa vazia, por uma nesga de segundo. E ela viu o futuro imediato e irrevogável daquela cena. E nem sequer deu tempo de gritar. Mesmo que de nada adiantaria. Entretanto, brotou de suas cordas vocais um gemido como um frêmito: ai, Jesus, Jesus, Jesus! E o choque de diferentes pesos e velocidades arremessou seu corpo franzino para o alto e ele rodopiou no ar, numa cambalhota circense e tinha uma enorme pedra de sólido granito ao cordão da calçada e sua cabeça num ângulo de 45 graus em relação à pedra iria se esborrachar em sua quina e ele bateu no asfalto como uma bola de borracha e desvirou-se no espaço retornando à condição de bípede e como um João bobo de plástico inflado ficou de pé indignado aflito pálido e tímido. E seguiu seu rumo.
Um menino, meu Deus, uma criança...nasceu de novo! Tu és bom, Tu és bom! Bem dito menino renascido, bendita mãe que nada viu, bendita a vida...
Olhou dentro de seu veículo as pessoas indignadas, gesticulando, o motorista apontando, tecendo comentários. Sim, todos estavam obviamente pasmos, pois um menino quase morrera, que coisa estúpida... Ó Deus, um menino se salvara, isto era o que importava!
Cânon voltara a verter em seus ouvidos, como um oceano turbulento, traçando uma parede de isolamento acústico entre ela e as pessoas da lotação. Sentiu vontade de compartilhar seus nervos em frangalhos pela morte eminente de um menino. O que estariam comentando os demais passageiros? Todos tinham visto o ocorrido, como que de camarote, num teatro de bancos amolfadados. Como estariam seus corações frente a tudo aquilo?
Tirou os fones dos ouvidos.
- Claro, ela estava errada. Julgou que a lotação ia avançar o sinal amarelo e quis ganhar a vez!
- Sim, e ainda se achou cheia de razão!
- Mas eu não tive culpa, vocês viram...parei bem na esquina, aguardando a minha vez...
- Mas a culpa de ultrapassar o sinal foi dela, tá na cara!
- De certo comprou a carteira...
- Está cada vez m ais difícil dirigir nesta cidade...
Nenhum outro comentário. Só seu patético espanto deixou-a por um breve instante suspensa a equilibrar-se num fio. Como se tivessem se rompido os elos que lhe encadeavam os pensamentos. Fora por um lapso de tempo de sua nave racional, duvidava de sua lucidez.
Uma fenda abissal entre o seu coração e aquelas bocas todas tragou-lhe de volta ao seu banco executivo. Cânon em (D)escompasso. Mundo oco, homens de lata, espantalhos tristes, meninos perdidos ...
Com o coração também em descompasso, voltou os fones aos ouvidos, encolhendo-se na bolha de sons que a protegiam, como num útero cósmico.
www.youtube.com/watch?v=RSCzMT8IMME - link para ouvir a execução
Assisti o vídeo Cânon in Z. Muito peculiar a execução. Me causou em dados momentos uma breve mistura de Mozart, muito sutil. Bonito.
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluir