domingo, 2 de setembro de 2012

Filo genético



Gosto de chuva, mar e céu. Gosto das forças todas da natureza em mim e além de mim. Gosto de bichos, todos, ou quase. Com asa, com patas, que voa, que galopa, que rasteja,  que Deus me proteja da cobra, mas é linda!

O cavalo, por exemplo, me é símbolo de força e liberdade. No potro selvagem, vejo a fúria magnífica com que expulsa seus medos de ser aprisionado. Mas a doma humana, quando respeita este instinto sagrado no animal, e em si mesmo, demonstra o milagre da fusão entre racional e irracional. Ambos ganham, quando em equilíbrio ajustado. No animal domesticado vemos a doçura da confiança e da entrega, bem diferente de submissão. A palavra "domesticar" contem em sua raiz "dom" - Senhor.  E vem dEle todo o aprendizado libertador. A troca de diferentes linguagens aproxima e funde sentimentos, em todas as esferas.

As aves, doutro filo, mas certamente não de outro feeling, me encantam de igual modo. Pégaso, então, é perfeito! Bendita expressão humana de seus mitos e medos...  Mas, nem tanto ao céu e nem tanto ao mar, observo um humilde canarinho, apenas. Um canário preso na gaiola expressa sua agonia de não poder voar, cantando. Seu canto profundamente agudo, sonoro e harmonioso, são suas asas para a liberdade. A natureza nos ensina tudo, e em tudo nos basta a  sensibilidade, que é a inteligência da alma. É ela que  ilumina e unifica nosso corpo. E Deus me deu isto, transcendente a qualquer limitação física.

Tenho sensibilidade nos 5 sentidos, e em muitos outros, que a contabilidade científica ainda não computou, nem nunca vai computar. “O que é essencial é invisível para os olhos”...  Isto é um luxo! Agradeço a Deus por me criar pele de cristal. Sei da profundidade com que Ele me agraciou, e abomino falsa modéstia. É impossível a quem reconhece o milagre da natureza, além dos limites do seu corpo,  não reconhece-lo em si mesmo, uma vez que somos cosmicamente unificados à vida.  

Entretanto, por ver a natureza como  Graça divina, apesar da verdade cristalina de que “tudo é vaidade debaixo do sol”, me acredito em salvaguarda deste veneno, na medida do possível humano, suficientemente em paz com a humildade que dignifica e liberta. Daí volto ao canário, tão significativo em sua gaiola, quanto cada um de nós na sua. Me volto à sua liberdade de alma, pois nem só de pão vive o homem, nem a mulher...

O medo é uma corrente gigantesca. Mas o canário já não o tem mais. O aprisionamento sofrido por forças que vão além dele próprio deram-lhe um novo berço, praga da civilização, chamado zona de conforto. Se a porta se abre para grandes vôos, não se sabe o que fazer. Mas como Deus tudo prevê, embora os gens do corpo possam ser modificados, os da alma não. Esta praga não alcança a alma. A agonia nos mantem inquietos, insatisfeitos, não obstante nossas vãs tentativas de esquecer nossas origens, e nos fazermos apenas coisas entre as coisas.  E cantamos, dançamos, rimos e choramos, e enlouquecemos...

O medo, como no potro e em qualquer outra vida, é  proteção contra predadores, e não é à toa que se encontra mergulhado na zona límbica, mais primitiva do cérebro. Precisamos percorrer um caminho inicial ao seu abrigo, até que encontremos a luz que não se apaga. Esta é, enfim, a liberdade!

A palavra animal significa que existe uma chama, uma força que impulsiona  parte da vida inanimada, sem vontade própria, e que ali se abriga. Acredito que os vegetais também tem “ânima”, e até os átomos, principalmente. É que Aristóteles, quando fez sua classificação, ainda não sabia disto. Não teve o privilégio de ver um turbilhão de átomos se atraindo e se repudiando...

Quanto ao medo, muitos medos, resquícios da infância, ainda habitam em meus porões e mostram a cara pela janelinha, para respirar. Mas muitos outros foram metabolizados pelo amargor da bílis do dia-a-dia, me fazendo nova criatura. Bom mesmo é que a gaiola do meu corpo me permite filtrar pelos poros, me evadir, numa ode à alegria. Eu, a cobra, o potro, e o canário...


Adendo - Amo os bichos, mas barata ainda não. E se Deus me fez assim, quem sou eu para querer mudar?


2 comentários:

  1. Oi, consigo me identificar com quase tudo o que dizes. Sinto que tenho uma sintonia fina com a natureza e com os bichos (quase todos, ainda não consigo apreciar cobra, mosquito, lacraias, larvas, arghs!).
    Sobre o canário na gaiola, tenta encontrar no Google, tem (não lembro se uma poesia ou um conto) do Machado de Assis sobre isso, muito lindo, acho que irias gostar. Não sei mais onde li, só lembro na sensação boa que ficou até hoje por ter lido e que tem a ver com o que escreveste. Beijoca.

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  2. Muito bom! É o primeiro texto seu que leio e já achei interessantíssima sua obra. Percebi a influência da Biologia ali, hehe.

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